Kimba, O Leão Branco – Os clássicos e a auto censura

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Yo!

Muito antecipado e esperado, o mangá de Kimba, o Leão Branco finalmente chega às livrarias do Brasil. E cheio de polêmica.

O trabalho de Osamu Tezuka para os mangás e inestimável. Ele criou o que é o mercado de mangá hoje, trouxe a narrativa dramática do cinema para as páginas dos quadrinhos japoneses e ainda estabeleceu os padrões de produção das animações em massa, inclusive treinando muitos dos criadores das maiores empresas do ramo hoje, como a Tatsunoko. Seus primeiros trabalhos são pérolas históricas. Seus últimos, mostram o quanto ele inventou em seus anos de criador. Comparar Metrópolis e Dororo, ambos disponíveis no Brasil pela NewPOP, deixa bem claro como Tezuka pensou e mudou algo que não era nada diferente das tirinhas de jornais para algo que se aproxima bem mais de um filme, como é hoje.

E entre seus clássicos, o maior deles acaba sendo o mais injustiçado. Kimba, o Leão Branco, é considerado um dos trabalhos mais incríveis de Tezuka. Por mais que Tetsuwan Atom (Astroboy) seja mais popular, Kimba sempre foi considerado mais relevante e emblemático na carreira de Tezuka. Mas também acabou se tornando polêmico quando o mangá se internacionalizou.

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A história do pequeno leãozinho orfão que se torna rei não foi publicado em quase nenhum país fora da Ásia. Mesmo os Estados Unidos, onde praticamente toda a obra de Tezuka já recebeu mais de uma versão. E a culpada disso é a censura.

Kimba se passa na África. Para os padrões da época, Tezuka fez uma pesquisa intensa para saber sobre a geografia, fauna, lendas e história do berço da humanidade. Mesmo assim, em seu tempo, muita informação ainda era nebulosa, muitos padrões de estilo eram quase fantasias, de tão distantes que eram da realidade. Era a década de cinquenta e fora de fotos, provavelmente Tezuka jamais tivesse visto uma pessoa negra pessoalmente. Seus padrões foram a forma que uma de suas influências, as animações de Walt Disney, usavam.

Décadas depois, quando as páginas de Kimba foram vistas mundo a fora, editores de diversos países vetaram. “É racista”. Na verdade, Tezuka já sabia disso antes da última versão de Kimba, quando ele fez algumas alterações na história e desenhos. Um de seus trabalhos mais elogiados, complexo em sua simplicidade, era completamente desconsiderado simplesmente porque alguém achou que a forma que Tezuka desenhou os nativos era preconceituosa. Ele teve a chance de redesenhar tudo, mas decidiu manter. E isso é explicado em uma carta que é utilizada como padrão em toda a coleção histórica de Osamu Tezuka, base das edições da NewPOP.

Aos senhores leitores.

Dentro dos materiais dispostos na série “Coleção Completa de Mangás de Osamu Tezuka” (Tezuka Osamu Manga Zenshu), várias etnias estrangeiras, como os negros africanos e o povo do sudeste da Ásia, são mostrados. Por vezes, a arte em que referem pode remeter à imagem que se havia na época, onde o conhecimento desses povos era reduzido, coisa que seria impensável para a situação cultural atual. Atualmente, esse tipo de traço é considerado preconceituoso para com os negros e alguns povos estrangeiros. A partir do momento em que existem pessoas que se sentem incomodadas por essa interpretação, nós devemos ouvir cada uma delas atentamente.

Porém, usar as características mais marcantes das pessoas para parodiar faz parte importante das técnicas de humor dos mangás da época. Nos materiais de Tezuka, em especial, isso é muito recorrente, tendo vários povos, de vários países  parodiados. Ainda, o autor não se limita às pessoas, recorrendo ao mundo dos animais e plantas, até mesmo o universo da imaginação, para criar seus personagens de humor. E isso não exclui sua própria figura, caricaturizado com um nariz muito maior que o normal. E mais, o autor já escreveu sobre o civilizado e não-civilizado, do país desenvolvido e do país em desenvolvimento, do forte e do fraco, do rico e do pobre, do habilitado ao deficiente, e acredita fortemente que toda exacerbação é danosa, em todas as suas histórias espalha um forte “amor à humanidade”.

Se hoje estamos aqui a publicar esta “Coleção Completa de Mangás de Osamu Tezuka” desta forma, é por que o autor, já não presente entre nós, está incapaz de o fazer por si e ao fato de que a personalidade do mesmo jamais permitiu que terceiros modificassem seu trabalho de qualquer forma. Mesmo estando sujeitos a eventuais adversidades, cremos não haver problemas graves, e nos consideramos no dever de manter estas valorosas obras de arte da Cultura Japonesa. Mais do que tudo, nós somos contra quaisquer forma de preconceito que exista neste planeta, e admitimos o preconceito como danoso. Isso faz parte do dever como editores. Aos senhores leitores, pedimos gentilmente que, ao ler essa história de Tezuka, entenda que os diversos preconceitos são reais, existem, e reflita sobre suas resoluções.

Tezuka Production / Editora Kodansha

De nada importa a trama transformar não Londres, nem Tóquio ou Nova Iorque, mas sim as florestas africanas em um palco fantástico e rico. O que é visto é a possibilidade de o público não entender isso e só ver uma forma que acham ser preconceituosa, sem considerar os fatores históricos, em uma edição que é lançada exatamente com o intuito de preservar e apresentar um pedaço da história cultural do mangá, e não só dele, dos quadrinhos como um todo, da cultura popular, sem a maquiagem política do mundo que é considerado correto. Outras histórias da época, como alguns dos álbuns de Tintin, clássico de Hergé, também sofrem do mesmo fator.

Espero que entendam que isso não é a defesa da “liberdade de ser preconceituoso”. Mas sim a defesa de trazer uma das obras mais interessantes do começo da história dos mangás para a nossa língua portuguesa, tornando acessível este produto cultural de uma época e de uma sociedade diferente, pelas mãos de um gênio, uma figura ímpar para a cultura japonesa. E que não queria panfletar o racismo, muito pelo contrário. Ele transforma a África em um mundo mágico.

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Capa da NewPOP para Kimba O Leão Branco.

E isso sem contar no oportunismo da Disney, que com a animação Rei Leão, plagiou Kimba, que nunca poderia pisar nos EUA mesmo. O caso foi abafado nos tribunais, mas qualquer um pode juntar os pedaços, como as artes conceituais, onde Simba é branco.

Por isso mesmo esta edição de Kimba, o Leão Branco em português, se torna tão importante. É uma das raras versões do mangá em língua ocidental, tornando finalmente possível ler este clássico da forma que foi idealizado, mesmo sem conhecer a língua japonesa. Tradução e adaptação de Fabio Sakuda. Isso mesmo, eu!

Kimba, o Leão Branco, estará disponível em livraria ainda em março, no mesmo formato do restante da coleção Osamu Tezuka da Editora NewPOP, um formato luxo que nenhuma outra editora usa hoje.

3 ideias sobre “Kimba, O Leão Branco – Os clássicos e a auto censura”

  1. Que ótima notícia, finalmente poderemos desfrutar com mais uma bela obra de Osamu Tezuka. Quanto ao foco da discussão, concordo muito com o que você defende em seu texto, você chega a citar a situação de Hergé, até mesmo Eisner já foi acusado de racismo devido a retratar personagens descendentes de africanos de forma caricata, mas ambos se não me engano também foram a publico se retratarem ou algo do tipo, mas o que está em questão é que mesmo que não seja intencional, para um leitor que descenda dessa ou de outras etnias, acredito que se o mesmo ler e acreditar que de fato não se trate de uma interpretação racista, a meu ver o desconforto é inevitável. No mais o que realmente importa é que podemos finalmente ler esta ótima obra e também todos somos humanos no final das contas. Até mais, ótimo texto.

  2. Digo o mesmo, já está disponível pra compra? Esse eu não posso deixar passar, Kimba é o primeiro mangá sobre o qual eu fiz review e agora está sendo oficialmente lançado por aqui. Infelizmente, eu quase nunca vejo nada da J-Pop aqui em Brasília, nem mesmo em grandes livrarias como a Cultura ou a Fnac. O jeito é encomendar e quero fazer isso o quanto antes.

    Eu lembro de ter tocado no mesmo assunto quando escrevi sobre Kimba no Maximum Cosmo. Infelizmente, alguns dos autores que originalmente fizeram uso da Black Face realmente eram racistas e expunham suas opiniões publicamente. Esse é o caso do Will Eisner, que também é um grande gênio dos quadrinhos. O que realmente dói é ver que, no caso de Tezuka, isso é exatamente o contrário do que ocorre, já que suas obras sempre foram carregadas de ideias progressistas e ele sempre esteve a frente de seu tempo.

    Aqui está um texto tratando sobre o mesmo assunto, mas a respeito do Cyborg 009, de Shotaro Ishinomori:

    http://4thletter.net/2012/06/before-watchmen-shotaro-ishinomoris-cyborg-009/

    Depois de ver o mesmo sendo atacado por motivos similares, ver um texto assim é um refresco para os olhos.

  3. COMO ASSIM LANÇADO EM MARÇO? Quando e onde? E o preço? Kimba fez parte da minha infância na tv cultura, é obrigatória na prateleira!

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