Hikaru Utada canta da introspecção no seu novo álbum, “BAD MODE”

No dia 19 de janeiro, Hikaru Utada, um dos maiores nomes da música japonesa, comemorou o seu aniversário de 39 anos. E também lançou o seu oitavo álbum de estúdio em japonês, o disco “BAD MODE (BADモード). Com 14 faixas, o álbum é composto por canções inéditas e por alguns singles lançados previamente ao longo de 2020 e 2021, como as canções “Time”, “Kimi ni Muchuu” e “One Last Kiss” – tema do filme “Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time”.

 

 

Um olhar da introspecção

 

Em entrevista para a Billboard, Hikaru Utada comentou sobre como o novo disco reflete uma outra abordagem do amor, diferente do que tratou nos trabalhos anteriores: o foco aqui é no fortalecimento do seu amor próprio, para que assim ela possa ter conexões genuínas com os outros, independentemente do tipo de relação estabelecida – seja amizade, relação familiar, romântica ou de outra espécie. Só assim ela pode realmente ajudar e estar presente nas vidas e relações com aqueles que ama. Ela revelou ser uma grande fã do programa RuPauls Drag Race, e que um dos bordões da apresentadora RuPaul ressoou nela durante o processo de criação do disco: “se você não ama a si mesma, como você poderá amar outra pessoa?“.

Capa do álbum BAD MODE, de Hikaru Utada

 

Escrito durante a pandemia de COVID-19, o álbum também reflete sobre a instabilidade emocional vivenciada pela artista e pelo restante do mundo, sobretudo na faixa título, “BAD MODE“. Sobre a escolha do nome para o álbum, que é escrito em inglês e em japonês (BADモード), Hikaru disse:

Na verdade, é uma mistura estranha de inglês e japonês. Eu sei que não faz muito sentido em inglês. E nem em japonês. É uma coisa moderna, mais da juventude. Em japonês, quando você usa a palavra em inglês “bad” (mal), como “ah, isso me deixa mal”, significa que “isso me deixa triste”, ou me dá um sentimento ruim. Então, “bad” é uma abreviação pra “bad vibes” (sentimentos ruins). A maneira como eu uso isso na música é o oposto de se sentir ótima e estar em uma situação incrível. Em resumo, é sobre estar um pouco pra baixo, ou apenas atravessando um período mais difícil. 

É partindo deste olhar para si mesma que a artista se coloca nas letras do disco. Em “Pink Blood“, música lançada em 2021 como tema do anime To Your Eternity, Hikaru canta: “Qual o sentido de ser valorizada por alguém que não entende o meu valor?“. Na música “Find Love“, ela é ainda mais enfática: “Eu não tenho mais que fingir ser uma boa mulher/ Eu não deixarei a minha felicidade para ninguém mais além de mim“.

 

 

Caminhos e experimentações

 

Nas suas redes sociais, a cantora vinha comentando sobre “BAD MODE” ser, até então, o seu álbum favorito – o que só aumentou as expectativas sobre o trabalho. Diferente dos anteriores “Fântome” (2016) e “Hatsukoi” (2018), discos nos quais a artista trabalhou com uma orquestração maior nas canções, “BAD MODE” toma um caminho bem diferente: Hikaru se volta para a experimentação de sons com a house e eletrônica, lembrando em alguns momentos a energia presente no seu disco “Heart Station” (2008), e principalmente o trabalho realizado em seu primeiro disco em inglês, “Exodus” (2005) – um dos trabalhos mais queridos pelos seus fãs e pela própria Hikaru. Sobre a semelhança com o seu álbum “Exodus”, a artista comentou:

Após dois álbuns assim (“Fântome” e “Hatsukoi”), eu sabia que queria fazer novamente algo que fosse sonoramente estranho. Eu queria retomar isso. Eu me voltei para o “Exodus” e senti algo similar, como se uma libertação acontecesse dentro de mim. Eu só queria deixar rolar, com mais sons eletrônicos que eu construísse do zero.

Passando por canções mais dançantes, outras mais introspectivas e algumas até experimentais, em pouco mais de 1h de duração “BAD MODE” apresenta um caldeirão de estilos musicais, mesclados pela habilidade da artista em tornar o disco coeso sem diminuir a individualidade de cada canção. “Find Love” é uma canção com um direcionamento mais próximo do house, mas que não destoa do R&B de “Time“. A faixa “Somewhere Near Marseilles“, em seus quase 12 minutos, faz lembrar o electropop do álbum “Honey“, da sueca Robyn. Até a carregada canção eletrônica “Face My Fears” – parceria com Skrilexx e Jason “Poo Bear” Boyd, lançada em 2019 como tema para o jogo “Kingdom Hearts III” e incluída no álbum -,  consegue dialogar com o restante das faixas de “BAD MODE”.

Como de costume, o disco é produzido pela própria Hikaru, mas com a participação de outros produtores: o DJ britânico Sam Shepherd (conhecido como Floating Points) coproduziu as faixas “BAD MODE”, “Not in the Mood” e “Somewhere Near Marseilles”; o também britânico A.G. Cook participa em “One Last Kiss”, “Kimi ni Muchuu” e em um novo remix de “Face My Fears”; e o japonês Nariaki Obukuro nas canções “Time”, “Darenimo Iwanai” e “Find Love”. Este último já havia trabalhado com Hikaru em seu disco “Fântome“, na faixa “Tomodachi“.

Mas sem dúvidas uma das maiores surpresas do disco foi uma participação um tanto inesperada: a do filho de 6 anos da artista. Segundo Hikaru, foi o próprio garoto quem sugeriu que seus vocais entrassem na faixa “Not in The Mood”, após ela lhe mostrar no que estava trabalhando. Ela também comentou sobre como o filho já tem um bom ouvido para música e que costuma dizer que quer ser cantor um dia (e jogador de futebol, e cientista). Ao que tudo indica, o garoto é a criança que aparece de relance na capa do disco.

Como parte da promoção do disco, a artista transmitiu, no dia do lançamento do álbum, o show online Hikaru Utada Live Sessions from Air Studios. A apresentação foi gravada no Air Studios em Londres, no qual cantou algumas das canções do disco. O registro será lançado em uma edição especial do álbum físico de “BAD MODE” no Japão, com DVD e Bluray, que também incluirá bastidores e videoclipes do disco. Também foi disponibilizado no Spotify, em inglês e em japonês, a playlist Liner Voice + Hikaru Utada , um especial com comentários de Hikaru sobre os bastidores, inspirações e produção de cada uma das faixas do disco.

 

Hikaru Utada

Filha de pai produtor e mãe cantora, lançou seu primeiro disco oficial, “First Love”, com 15 anos em 1998. Contando com hits massivos como “Automatic” e “First Love”, o disco segue até hoje como o álbum mais vendido da história do Japão. Com influências do R&B e do pop estadunidense, a artista se tornou uma grande referência para futuras artistas femininas no Japão – tanto em musicalidade quanto em imagem pública, uma vez em que Hikaru não seguia um modelo de carreira como idol. O sucesso seguiu nos trabalhos seguintes, como “Distance”, “Deep River” e “Ultra Blue”. Colecionando recordes de vendas e de público, Hikaru teve diversas canções compondo as trilhas de animes, doramas e jogos, com destaque para as músicas na trilha dos filmes de Neon Genesis Evangelion e nos jogos da franquia de Kingdom Hearts.

 

No ano de 2016 lançou o disco “Fantôme”, após oito anos desde o antecessor “Heart Station” (2008). “Fântome” marca o retorno da artista após um longo hiato na carreira, durante o qual Utada teve seu primeiro filho e perdeu a mãe, Keiko Fuji, que cometeu suicídio em 2013. Em 2018 retornou aos palcos japoneses com a turnê “Laughter in The Dark”, promovendo o disco “Hatsukoi” e comemorando seus então 20 anos de carreira – o registro do show está disponível na Netflix.

Ela também teve incursões no mercado internacional: usando o nome artístico de Cubic U, ela lançou em 1993 o disco “Precious”. Após a sua estreia oficial em 1998, mas com o nome artístico de Utada, lançou outros dois álbuns inteiramente em inglês: “Exodus” (2005) e “This Is The One” (2009). Hikaru já trabalhou com artistas como Ne-Yo e Timbaland, além de já ter sido reconhecida por artistas como Mary J. Blige e Aaliyah – esta última, entrevistada pela própria Hikaru em 2000.

A artista nasceu em Nova Iorque, então o inglês é o seu primeiro idioma – algo que ela comentou em diversas entrevistas ao longo de sua carreira, principalmente sobre a surpresa de muitos não-japoneses com o seu “bom inglês”.  “BAD MODE” é oficialmente o seu primeiro disco bilíngue, com músicas totalmente em japonês e em inglês – incluindo versões das mesmas canções nos dois idiomas.

Algumas curiosidades sobre a artista são duas de suas grandes paixões: ursos e o jogo Tetris. Em 2006 ela bateu o recorde no jogo de Tetris para o Nintendo DS, atingindo a pontuação máxima do jogo em menos de 18h. Já os ursos estão sempre presentes em sua iconografia – seja em encartes, videoclipes ou explicitamente na canção “Boku wa Kuma” (Eu Sou um Urso), além de dar nome ao seu usuário no Instagram, @kuma_power

 

 

Durante uma live em seu Instagram em junho de 2021, Hikaru se assumiu publicamente como uma pessoa não-binária, ou seja, ela não se identifica com as definições de gênero entre homem e mulher. Ela disse: “Sabe, é junho (mês da visibilidade LGBTQ+), e eu sou uma pessoa não-binária. Então, feliz mês do orgulho!”. Em um outro post na rede social, ela comentou sobre como sempre se incomodou ao ser questionada se era “senhora” ou “senhorita”, e que nunca se identificou com essa divisão de pronomes e tratamentos conforme gênero ou classe, e que recentemente havia descoberto o pronome “Mx” (lê-se “mix”), o que a deixou muito feliz. Mais tarde ela anunciou que seus pronomes são she/them – respectivamente “ela” e um pronome de gênero neutro, que em português equivale às variações elu/ile.

A cantora nipo-britânica Rina Sawayama – que possui parcerias com nomes como Lady Gaga, Elton John e Pabllo Vittar, e participou do mais recente disco da banda Metallica – , exalta Hikaru Utada como a sua maior inspiração para ter se tornado cantora. Em 2019, Hikaru compareceu a um show de Rina, e posou junto dela – que compartilhou, eufórica, o registro nas redes.  Em 2020, Rina Sawayama foi uma das artistas que participaram de uma comemoração para os 22 anos de carreira de Hikaru, criando uma playlist com as duas 22 canções preferidas da artista. Essas playlists foram reunidas em uma página especial para a campanha.

 

A Netflix anunciou a produção de uma série chamada “First Love“, inspirada nas canções de Hikaru Utada – e principalmente em seu primeiro disco, de nome homônimo. A estreia da série está prevista para 2022.

Você pode ouvir o álbum “BAD MODE” no Spotify, e conhecer mais músicas da artista na playist This is Hikaru Utada.

 

Videomaker e ilustrador, formado em Design Gráfico, coleciono mangás desde os 9 anos. Fanboy da CLAMP e traumatizado por Nana não ter acabado ainda, tenho grande interesse em pensar quadrinhos e seus contextos sociais. Atualmente pesquiso quadrinhos e diversidade na USP e trabalho com jornalismo