Trigun e sua reflexão sobre o valor da vida

Heróis que matam seus vilões, embora seja um tipo de herói comum na cultura pop, poucas vezes esse tipo de personagem é referido como herói propriamente dito, recebendo em senso geral, o termo Anti-herói. Afinal matar é errado não é? Um herói jamais faria esse tipo de coisa. Vilões tirando vidas para alcançar seus objetivos ou simplesmente para descontar a raiva em um de seus capangas ( Darth Vader)  não é algo questionável. Antagonistas são os personagens errados na história, aqueles nos quais não devemos seguir o exemplo.  Mas nem sempre foi assim…

Se voltarmos no tempo, com os primeiros heróis da cultura pop americana, matar era uma coisa assustadoramente normal.  Começando pelos famosos livros de detetive, o personagem Sherlock Holmes influenciou uma onda de livros a popularizar pelo mundo, embora esse conhecido personagem não matasse seus inimigos, os escritores acabavam pedindo por trabalhos mais hardcore para o público da época que pedia algo a mais, assim nasceu o famoso gênero do detetive noar. Esse tipo de livro envolvia assassinatos, depravação, traição e todo tipo de tema considerado mais “Adulto” e também os famosos atos de “Heroísmo”, afinal  ainda era sobre um protagonista enfrentando caras maus.

Em seguida veio o percursor do gênero de quadrinhos de heróis, os “Quadrinhos Western”. São histórias nas quais pistoleiros baleiam inimigos ou indígenas. Esse tipo de quadrinho era muito popular pelo público infantil, afinal séries e filmes de Cowboys e todo outro tipo de mídia era o que dominava a cultura popular da época. As crianças pegavam arminhas de brinquedo e brincavam de balear seus coleguinhas na escola. Um estereótipo que remete bem essa época é o personagem Mike Teavee no famoso livro A Fantástica Fábrica de Chocolate ( Charlie and the Chocolate Factory), um garoto vestido de pistoleiro, agressivo, que ama a violência afinal era com ela que ele crescia, então idolatrava.

Agora vamos um pouco mais no futuro, os chamados “Quadrinhos de herói”, um dos maiores ícones desse gênero é o famoso Batman.  Esse conhecido personagem nasceu sob influência dos dois gêneros que citei anteriormente, o Detetive Noar e o  Cowboy Weastern. Batman era um detetive, mas também andava com seu parceiro Robin (um clichê comum no gênero weasterm). Ele espancava os caras maus, desvendava assassinatos e também matava. Sim, ele matava.  Era comum nos primeiros quadrinhos vermos o Batman enforcando seus inimigos ou até mesmo baleando e ele não era o único herói a fazer esse tipo de coisa.

Com o tempo, graças as reclamações do público (e também pelo próprio personagem), uma lei foi implementada nos heróis da seguinte década, a “Regra de não matar”. Heróis não matam.  Os personagens de quadrinhos ainda resolvem as coisas com os punhos, mas matar nunca. Matar é coisa de vilão, matar é antiético, matar é anti-cristão e isso não deve ser normalizado. Porém, é claro que os vilões não vão deixar de morrer na ficção. Não podemos deixar o público achar que quem comete atrocidades pode sair impuni. Por isso nos clássicos da Disney (o maior exemplo da época de filmes para o público infantil, que gerou uma base para esse tipo de produção que continua até hoje) os vilões quase sempre acabavam morrendo no final, não assassinados pelo heróis mas caindo por acidente de algum penhasco. O clichê do vilão caindo de algum lugar pela própria desatenção é muito comum em produções infantis e isso pode refletir até em filmes de heróis.  No filme Batman de 1989 (só um ano pra ser considerado um  filme dos anos 90 aliás) o herói simplesmente deixa o personagem cair para morrer. Nos filme do Homem Aranha, começados em 2002, todos os vilões morrem de forma similar: Doende Verde é perfurado por acidente por sua própria lamina, Doutor Octopos se sacrífica para impedir sua própria maquina, Venom pula em uma explosão;  todos exemplos de vilões cometendo praticamente suicídio. Desde que não seja causado pelo herói está tudo bem matar o vilão.

Boa parte da mentalidade de não matar acaba vindo de valores de uma sociedade cristã (das leis também, mas estou me referindo ao conceito de banir essa ideia em todo lugar como um todo e não o ato em si), assim como os conceitos de herói do ocidente que são influenciados pelo herói cristão, tendo como base Jesus Cristo, por isso tantas analogias com o auto sacrifício pelo bem maior desse tipo de herói (Superman é um dos heróis com maior número de analogias a Jesus).

Estou falando sobre produções americanas, não é? Mas e as japonesas? Os heróis ocidentais, assim como seus vilões, seguem a ideia cristã do anjo e do demônio, do bem e do mau, do certo e do errado, do céu e do inferno. A divisão de moralidade é muito mais clara, enquanto os heróis japoneses nem tanto. Se formos considerar, a maioria dos heróis japoneses podem ser considerados anti-heróis no ponto de vista ocidental. Na abertura do Tokusatsu Jiraiya  existe um trecho no qual a versão brasileira canta “Ele luta pela vida” e tem uma cena de um carro de vilões explodindo. Um dos exemplos antigos é o personagem Black Jack de Osama Tesuka, que mata o filho de um homem rico para proteger um garoto pobre logo em sua primeira história.  Os exemplos são muitos, matar seus inimigos foi o padrão de mangás em geral, principalmente na década de 80 e 90. Um dos mangás mais populares da época na Shonen Jump (uma revista para garotos jovens) era Hokuto no Ken, a história de um homem musculoso em um mundo pós-apocaliptico, em que explode seus inimigos de dentro para fora de maneira brutal. Nessa mesma época tínhamos Goku assassinando vários membros da patrulha vermelha e Seya matando cavaleiros de ouro com suas mãos. Tudo aceitável para passar na televisão e crianças assistirem.

Nos anos 80 e 90 eram bastante populares pelo público adulto filmes de ação de homens agressivos assassinando um monte de inimigos, como Robocop e Rambo. E embora, sim, sejam filmes direcionados para o público adulto, eram bastante populares entre as crianças (citei esses dois em específico por que ambos receberam desenhos para o público infantil, embora a violência tenha sido removida isso ainda é uma decisão questionável). Um personagem famoso entre o público infantil da época era Conan o Bárbaro. A Mattel queria vender brinquedos do personagem ao público infantil, um dos personagens mais brutais da ficcção, e assim veio o surgimento do personagem He-Man.

 

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Muitas produções violentas na época eram populares com o público infantil. O ocidente continuava faturando com isso, mas claro fazendo uma versão mais censurada desses personagens. Mas e quanto ao Japão?  O Japão não se importou em fazer mangás nesse estilo sem censura , afinal se funcionou lá funcionaria aqui não é? O gênero de mangá violentos se popularizou no Japão, com Dragon Ball passando de um mangá de comédia para um mangá de lutas sangrentas e Saint Seya tendo uma adaptação em anime com litros de sangue na tela. Uma década de tanta violência criaria um padrão de gênero e para cada gênero pré-estabelecido vem a sua desconstrução.

 

 

O Herói Pacifista dos anos 2000

Os anos 2000 foram a década em que o jogo virou no mundo Shonen. Passamos de heróis que resolvem tudo na base da violência para heróis que preferem conversar e resolver as coisas pacificamente. Embora nos dias de hoje, depois de mais de uma década, com tantos heróis pacifistas isso virou motivo de memes (o clássico Naruto e seu discurso no jutsu), era  um caminho natural a se seguir, afinal até violência cansa. Nessa década tivemos personagens como Naruto que resolve as coisas na conversa, Yoh de Shaman King que não gosta de lutar, Samurai X e muitos outros.

Mas claro mesmo os personagens sendo anti-guerra e pacifista vemos eles matando vilões constantemente. Naruto já matou um membro da Akatasuki que estava sendo enganado pela organização e Kakuzo, por exemplo. Mas a diferença é que agora os personagens tentam evitar matar ao máximo. De todos os personagens pacifistas dessa época, um em específico que eu acho mais interessante é o Vash, o Estouro da Boiada (sim vou usar a tradução da dublagem) do anime Trigun.

 

Trigun um anime que fala sobre o valor da vida

Embora o mangá tenha sido lançado em 96 e o anime em 98, vou considerar como um anime dos anos 2000, afinal segue muito o clichê de mangás dessa época e foi lançado no Brasil nessa época. Também vou deixar claro que me refiro a versão animada pelo estúdio Madhouse no ano de 98 e não a versão original em mangá. Existem diferenças entre uma versão e outra, o mangá vangloria mais a violência que sua versão animada, o que foge bastante da ideia que quero discutir nesse post. Vou falar sobre o anime de 98 e o porquê de ele se diferenciar de outros animes que abordavam esse tema de não matar de forma superficial. Deixando claro que terão alguns spoilers a partir daqui.

O início do anime tem um clima diferente do que viria em sua segunda metade. Começa com duas funcionarias de uma agência de seguros seguindo um lendário pistoleiro chamado Vash, O Estouro da Boiada, pois esse pistoleiro, além de ter uma recompensa enorme em seu nome, é dito como responsável por uma série de desastres. Como mencionei anteriormente, um dos gêneros mais famosos nos Estados Unidos era o Western violento; e a ideia de ser um mangá japonês se passando em um universo Western retro futurista e abordar o tema da violência (que eu discuti no inicio desse post, esse começo não foi filler) é muito interessante. Afinal esse é justamente um dos gêneros que começou os quadrinhos de herói e influenciou os mangás em geral. O anime começa como uma série de comédia na qual o nosso protagonista tenta evitar situações que podem resultar em assassinato.  É um mundo onde a maioria das pessoas usam armas de fogo, uma ferramenta de matar. Nosso protagonista é um dos seres com maior poder destrutivo desse mundo, mas mesmo assim ele tenta dominar essa ferramenta para evitar que ela seja mau usada pelas outras pessoas.

É um anime em que sabemos que o protagonista tem um poder destrutivo muito maior que a maioria dos personagens, com força para furar uma lua. Ainda por cima tem uma habilidade excepcional com armas de fogo e mesmo assim conseguimos sentir tensão em cada cena. Existem muitos mangás em que o protagonista tem mais poder que seus antagonistas, Isekais ou o famoso One Punch Man por exemplo. Mas esse tipo de história ou é tratado como puro auto-insert (como no caso dos Isekai) ou o lado do humor (como em One Punch Man ou Assassination Classroom), afinal muito poder remove a tensão na narrativa. No caso de Trigun é diferente, a questão não é vencer, é vencer sem matar.

Até mesmos personagens pacifistas de Shonen recorrem a matar quando não se tem escolha – Goku em Dragon Ball Z se recusava a matar diferente de sua versão clássica, mesmo assim já matou diversos vilões. Vash é diferente, ele jamais trai sua ideologia. Mesmo sendo baleado, mesmo vendo pessoas inocentes morrendo em sua frente ele não mata, isso é a principal questão desse anime: se isso é certo ou hipócrita?

Quantas vezes já vemos alguém se questionando o porquê do Batman não matar o Coringa e, embora seja abordado as vezes nos quadrinhos, por serem histórias cíclicas essa questão vai ser ignorada nas histórias do morcego uma hora ou outra. Dai vem a grande vantagem da narrativa linear dos mangás, você poder abordar as consequências de cada decisão dos personagens.

Vemos o sacrifício que Vash tem que lidar por seguir essa ideologia em um mundo que não se adequa a ela. Não é um mundo cristão, não é um mundo com leis claras. A única coisa que motiva esse protagonista a se sacrificar para evitar mortes é o valor a vida, que foi ensinado a ele por sua mãe adotiva.

Vash tem, como todo Shonen, um companheiro/rival, Nicolas Wolfwood, um padre de óculos escuros que carrega uma cruz gigante cheia de armas. Esse tipo de personagem mais sombrio que acompanha o protagonista é muito comum como Sasuke, Vegeta, Shadow, uma versão Anti-herói do protagonísta. Eu gosto como esse estereótipo de personagem é usado aqui para discutir essa questão. Eesse é um herói como o protagonista mas ele mata quando necessário, ele não vai deixar alguém morrer para poupar a vida do vilão. Acho interessante esse personagem ser justamente um padre cristão porquê ele segue justamente o protagonista herói cristão na ficção, ele diz ser contra violência mas mata quando não tem escolha. E, claro, é o tipo de personagem que o público geral mais aceita. Sua morte é uma das mais bonitas do mundo dos animes aliás, com uma música bíblica tocando de fundo e ele repetindo a frase “Não quero morrer”. A maioria das mortes heroicas em ficção acabam com o personagem aceitando a própria morte no fim. Mas dai vem o peso dessa cena, o personagem não aceita.

Pra finalizar vou falar de seu antagonista. Embora a versão em anime seja um personagem unidimensional, que parece querer matar humanos porque sim, ele funciona como antagonista nessa história.  Ele é o irmão gêmeo do protagonista, seu nome é Knives. Ele segue a ideia de morte enquanto o protagonista segue a de vida, simples assim. É simples, mas funciona. Existem pessoas que seguem esse tipo de pensamento simples na vida real. Tentar aprofundar de mais nesse aspecto (como o remake do anime lançado no início desse ano fez) só faz o personagem perder a sua ideia central. Não é sobre o personagem enfrentando um outro vilão, é sobre uma ideologia enfrentando a outra.

O anime termina com um duelo entre os dois e como sempre o protagonista ganha, mas o anime não chega a dizer que o jeito que o protagonista vive é o correto nem que todos devem seguir essa ideologia. Isso é que eu acho mais genial sobre esse anime. Não se trata sobre a mensagem que o anime tem para o público, é sobre o próprio personagem e o caminho que ele vai lutar para atingir.  O anime mostra os lados pró e contra de sua ideologia e não vangloria suas atitudes, mostrando que tem momentos que não se tem escolha. Uma das cenas mais triste do anime é quando Vash é obrigado a matar pela primeira vez para salvar suas amigas, mostrando que sim tem vezes que essa ideologia não funciona mas a questão não é sobre ela é sobre o personagem em sim.

Não vou falar mais porque esse anime tem muito a se discutir e não quero um post excessivamente grande. Tem o mangá que ainda tenho que finalizar. Deixando claro que não acho o mangá inferior, só que por mostrar a violência de forma mais explicita acaba seguindo um caminho diferente do anime e abordando outras questões. Quando finalizar o mangá faço uma matéria discutindo o mesmo. Esse é o fim do post “Amor e paz” ( “Love and Piece”).

 

o anime esta disponível no Crunchyroll

    Curto ver animes e jogos de maneira crítica. Adoro escrever.