Muito Kamen para pouco Rider

Kamen = Mascara, mascarado

Rider = Piloto

Piloto Mascarado

Esse foi o conceito mais básico possível quando Ishinomori Shotaro idealizou o que viria a se tornar umas das maiores franquias de tokusatsu, lá em 1971. A história de um jovem que foi sequestrado e modificado por uma organização maligna e irá usar os poderes dados pela mesma para a destruir. Como característica, ele esconde sua identidade sob uma máscara e luta junto de sua poderosa moto, que muito mais que apenas um veículo, faz parte de sua estrutura e seus poderes.

Essa base se mantém até hoje. Todo Kamen Rider, independente da forma ou temática, sempre tem a sua moto e/ou veiculo para fazer jus ao Rider em seu nome. Em alguns casos até mesmo mais de um veiculo é vinculado ao Rider da vez. O famosíssimo aqui no Brasil Kamen Rider Black/RX tinha em seu arsenal diversas motos e até um carro, que anos depois viria a ser homenageado em Kamen Rider Drive, sendo o primeiro Rider a ter como veiculo base um carro ao invés de uma moto.

Kamen Rider Black RX (1988) e sua Rider Machine Ridoron X Kamen Rider Drive (2014) com o Tridoron, uma releitura do Ridoron.

Porém, com o avançar dos anos e das produções, algo foi mudando. É de se esperar que uma franquia tão longínqua fosse se reinventando, não só no departamento criativo, mas o mundo ao seu redor. O Japão dos anos 80, não é o mesmo Japão dos anos 2000 assim como não é o mesmo Japão de 2023. Como qualquer outra produção cinematográfica, Kamen Rider é um show e precisa seguir regras, que com o tempo, são refinadas e atualizadas para se adequar a realidade dos tempos modernos. Uma das consequencias dessas mudanças foi que uma das principais características do Kamen Rider foi sendo cada vez mais colocada de lado: Sua moto (Ou Carro).

“Por que temos tão poucas cenas de moto em Kamen Rider hoje em dia?”

Lista contendo o tempo de tela total em que as motos (e carro) dos Riders aparecem no decorrer de suas séries, cobrindo a era Heisei e a era Reiwa. É fascinante perceber a queda dos números no avançar dos anos e sempre bom lembrar, todos devemos rir de Zi-O.

Respondendo de forma direta a pergunta é por causa de novas regulamentações de trânsito no Japão. Querendo ou não, os veículos que os Kamen Riders usam são motos customizadas, não são veículos regulares que qualquer um pode pegar e pilotar sem problemas. Para usar tais veículos, principalmente em ruas, é preciso uma permissão especial e mesmo para a Toei, essa permissão não é tão fácil de se conseguir. Nos anos 70 até meados dos anos 2000, essas leis ou nem existiam ou não eram tão rigorosas, por isso era mais comum o uso de motos e veículos nas cenas e isso também agrega em reserva ou aluguel de locações. Cenas com veículos demandam muito espaço, se não forem feitos em um local apropriado, como uma pista de automobilismo, terão que ser gravados em espaços públicos e é complicado fechar vias e ruas por horas em um dia de trabalho comum para filmar as cenas. Locações externas ainda são usadas, mas quando são apenas os atores interagindo, usa-se um espaço mais contido e que possivelmente não vai atrapalhar o dia-a-dia das pessoas ao redor.

Um dos episódios mais incríveis de Kamen Rider Kuuga (2000). Uma perseguição de moto e ainda a usando como arma para enfrentar um Grongi. Kuuga está disponível oficialmente na Amazon Prime Vídeo.

Um outro fator que também impacta bastante na redução dos veículos dos Riders é – para a surpresa de ninguém – venda de brinquedos. Sempre devemos lembrar que acima de tudo, tokusatsu em sua maioria não é nada mais nada menos que um comercial de brinquedo de 20min. Tudo o que um Kamen Rider usa na série é um merchandising. Seu uniforme, suas armas, seu cinto e claro, sua moto. Algo que foi notado é que a venda de brinquedos relacionado ao veiculo eram pequenas comparados com os cintos ou armas do herói, então isso incentiva a cada vez mais desapegar de que a moto merecia tanto tempo de tela quanto outros itens que são mais atrativos para o público alvo. Prova disso é a tendencia para que a moto da vez seja “fundida” com algum outro item, fazendo a “venda casada” de certa forma. Muitas vezes a moto não é só a moto, ela é um celular que pode virar uma moto ou algum outro apetrecho que é tanto útil em ser usado com a venda principal, o cinto, tanto quanto pode ser usado para complementar action-figures, por exemplo.

Aperta o cinto e bota o capacete.

Se tudo isso já não fosse o suficiente para justificar a decadência das motos em Kamen Rider, ainda vale citar um fator muito importante: Segurança.

Quando se acompanha tokusatsu desde suas origens podemos perceber um certo padrão em um “descaso” com a segurança dos dubles, suit-actors e atores durante as produções. O próprio Fujioka Hiroshi – o ator que interpretou Hongo Takeshi em Kamen Rider (1971) – ficou afastado da produção da série por um tempo após se acidentar durante as filmagens, fraturando a perna. Isso levou a introdução de um novo personagem, Ichimonji Hayato, um segundo Kamen Rider, fenômeno esse que acabou repercutindo em toda a franquia dali para frente, com o estigma de “guerreiro solitário” ficando cada vez menos frequente, já que os Riders sempre tinham companheiros e outros Riders para fazer companhia.

O caso de Fujioka não é o único, há diversos relatos de atores e dublês que ou se acidentaram ou tiveram que experienciar situações de trabalho que deixariam qualquer advogado de leis trabalhistas de cabelo em pé nos dias de hoje. Atualmente existem sindicatos e diversas leis que protegem os profissionais desse ramo de filmagens de ação que permitem sim que eles façam cenas arriscadas e ousadas, mas com muito mais garantias e seguranças, mas sem duvidas isso ainda é um grande limitador quando se planeja as possibilidades.

Com a tecnologia, muito dessa limitação está sendo substituída por CGi, não só em Kamen Rider, mas em outras franquias como Super Sentai e Ultraman, cenas de ação arrojadas e inovadoras são seguramente feitas com a ajuda da computação gráfica. Isso implica claro no caso de cenas com veículos. Ainda temos periodicamente cenas de ação com veículos, mas de forma alguma tão frequente. Imagina só ter que vestir aquelas roupas super elaboradas, seja de herói ou vilão, ter que pilotar um veiculo e ainda fazer stunts. Os riscos são altíssimos de um acidente acontecer, mas nada que um fundo de tela verde e planejamento para algo mais pontual não resolva. Por mais legal que fosse para nós, a audiência, ver cenas como o famoso episódio 4 de Kamen Rider Kuuga, hoje em dia é completamente impensável algo do mesmo gênero sendo feito “no seco”.

Seja um com a moto.

Com tudo isso em mente e entendendo os porquês da questão, só posso admirar uma das soluções que os Riders mais atuais têm tomado para não só manter a temática idealizada por Ishinomori, mas contornar a problemática de a moto ser uma parte integral do arsenal do Kamen Rider: E se ele FOR a moto?

Tecnicamente falando, podemos citar essa ideia lá em Kamen Rider Ex-Aid, quando um dos personagens, em sua forma Rider padrão, é literalmente uma moto. Kamen Rider Lazer acabou servindo tanto no papel como um dos Riders da série – e um dos meus personagens favoritos diga-se de passagem – como também servia para ser o veiculo do nosso querido pediatra gamer. Isso era a desculpa ideal para compreender que nem sempre seria possível o Rider título da série estar em cena na moto. – Principalmente depois do Natal. SE VOCÊ SABE, VOCÊ SABE. Game Over.

Kamen Rider Revice (2021), Kamen Rider Geats (2022) e Kamen Rider Gotchard (2023). É interessante reparar até no detalhe do Geats em que podemos ver os padrões de motor de moto em seu design, simbolizando que ele está vestindo o veículo.

Agora na Era Reiwa os Riders tomaram um passo adiante, começando em Kamen Rider Revice (2021) tivemos algo parecido com a dinâmica de Ex-Aid, tanto Revi quanto Vice podiam mudar as formas de seus corpos e geralmente Vice assumia a forma de um veículo. Sendo um hovercraft (a moto da vez) ou um skate, ele estava lá tanto como herói e meio de transporte. Em Kamen Rider Geats (2022) – Que surpreendentemente teve uma contagem bem alta de cenas de moto se comparar aos Riders dos últimos 10 anos – chegou em um ponto em que a moto se fez desnecessária, afinal ele como Rider em uma de suas formas mais evoluídas era mais eficiente do que subir em uma. Agora estamos em Kamen Rider Gotchard, o Rider de 2023 e mesmo ainda não tendo sido exibido na série no momento que escrevo esse texto, em divulgações de produtos já foi revelado que uma das formas do Rider Alquimista será justamente… Ele fundido com a moto! Ao mesmo tempo que ela se faz presente como uma parte integral da dinâmica e identidade do Rider, não está sob os riscos contratuais e jurídicos das leis de trânsito japonesas ou sindicatos dos dublês. Win-win situation. Compreendo que talvez não seja a solução que a maioria gostaria de ver nas séries Kamen Rider, mas eu pelo menos, acho criativo e inovador.

Conclusão.

Cenas dos bastidores de Kamen Rider W (2009), para o filme A to Z. Olha só o trabalho necessário para 5 segundos de cena.

Com o olhar apenas de fã, é difícil as vezes perceber e admitir que nosso seriado de super-herói japonês por mais fantástico que seja está sujeito a coisas mundanas como leis de trânsito e segurança no trabalho, mas antes de tudo elas são produções envolvendo centenas de profissionais e devemos ficar gratos e aliviados que com o avanço vieram melhores condições de trabalho, menos riscos e mais qualidade de vida. Com isso só garantimos ter por muitos anos mais, mais séries e heróis para nos inspirar e maravilhar.

Redator para o Genkidama em duas colunas mensais: - TokuTudo: conteúdo diferenciado sobre Tokusatsu no Brasil e no mundo. - Pitacos do Vilson : conteúdo diverso sobre animes, mangás, filmes e diversos aspectos da cultura japonesa. Também sou podcaster e faço parte do Henshin Rio, somos 5 cariocas especializados em falar sobre Tokusatsu.