Adaptações de anime precisam ser fiéis ao original?
Lembra daquela cena em que o Leorio, em Hunter x Hunter, se perde nos labirintos da primeira prova do exame e começa a delirar tendo pequenos flashbacks do seu passado? Não? Essa cena é da primeira adaptação de Hunter x Hunter, do anime de 1999. E não, não é um filler e nem está no mangá original. É uma adaptação. E a pergunta que fica é: não ser fiel ao material original é um erro?
O meu é melhor que o seu!
É comum ver que adaptações para filme de super-heróis provocam parte do público fã das histórias em quadrinhos muito pelo fato destes filmes usarem títulos de publicações conhecidas ou usarem material “x” ou “y” como base para as adaptações, causando uma certa comoção para que se preserve a fidelidade ao material fonte.
Essa discussão sobre a fidelidade que determinado filme deveria ter com o material original surge dado às críticas dos fãs de “como seria melhor se o filme fosse idêntico aos quadrinhos”. O mesmo acaba acontecendo em adaptações para filmes e séries baseadas em jogos, livros, games e é claro mangás e light novels.
O fato é que diferente do cenário de mangás e animes no Japão, o terreno corporativo de direitos autorais de super heróis, por exemplo, é um campo minado. Qualquer tentativa de adaptação “fiel”, querendo ou não, se tornaria moralmente e descaradamente desrespeitosa com os autores originais, já que esse cenário tem um histórico de não os creditar ou pagar pelo uso da menção ao material usado para adaptação, o que dirá usar a coisa toda!? (não que isso impeça qualquer empresa).
Faz melhor!
Adaptações em anime de mangás e light novels tem a prática comum da participação ativa dos criadores originais em colaboração com os estúdios e produção, seja ajudando a escolher um elenco de voz, nas artes conceito/storyboard, em roteiro e entre outras coisas. Mas mesmo com todo apoio e acompanhamento que ocorre com os artistas e os estúdios de anime, isso não os isenta dos comentários de fãs sobre a falta de fidelidade.
(Na imagem: página do mangá Trigun)
Falas como o anime não “captar a essência” ou “ideia original” e até mesmo dizer que tal coisa é “fora do tom”, seja lá o que isso signifique, vive surgindo em fanbases. Contudo, será que é realmente importante que uma adaptação seja uma cópia exata de sua inspiração?
Se a discussão já é controversa na adaptação de quadrinhos para o audiovisual, acredite que ela é ainda maior na adaptação de romances literários para o cinema. Essa é uma constante discutida e criticada até hoje. Porém a maior parte dos discursos apoiam-se sobre a ótica da tradução de um texto com suas nuances e abstrações (observadas pelo leitor) em retrospecto a representação visual (pautada pelas escolhas e interpretações do diretor na então adaptação cinematográfica).
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(Imagem da adaptação mais recente de Trigun: Trigun Stampede, 2023 – disponível na Crunchyroll)
Confuso? Com certeza! Resumindo: quando fazem filmes adaptando livros, o grande problema do público que conhece a história original é sobre o filme ser fiel a visão pessoal deles, de como eles enxergam ou entendem certas passagens ou descrições do livro. Mas no filme, o público é refém de como o diretor interpretou as mesmas coisas, na perspectiva dele.
Tudo igual de novo
Todo o dilema sobre adaptações para o audiovisual de quadrinhos sofrem dessa mesma discussão. Por ter o auxílio da imagem em seu material, isso parece invalidar qualquer margem de interpretação ou subtexto para a conversão das páginas para as telas.
(Comparação: One punch Man mangá à esquerda / One punch Man anime à direita)
Mesmo em questões acadêmicas ou crítica especializada, o termo “fidelidade” nessas adaptações é constante, ou é algo a se vangloriar ou desprezar. E isso é um problema para o contexto como um todo. Era comum ouvir criticas sobre episódios fillers, ou seja, não canônicos a história principal, muitas vezes usado pela equipe de animação para “dar tempo ao mangá original” de se distanciar narrativamente para que o anime se mantenha na grade de exibição, tendo posteriormente algo próprio para adaptar.
O canal Quadro em Branco já fez um vídeo sobre esse assunto em particular e que conversa bastante com esse texto.
Hoje em dia, fillers não são exatamente um problema. A indústria tem lidado muito bem com os formatos de temporada, mas as críticas dos fãs tem encontrado outros meios para se revoltar.
Emprestando os brinquedos.
“…O processo de adaptação, portanto, não se esgota na transposição do texto literário para um outro veículo. Ele pode gerar uma cadeia quase infinita de referências a outros textos, constituindo um fenômeno cultural que envolve processos dinâmicos de transferência, tradução e interpretação de significados e valores histórico-culturais.”(GUIMARÃES, 2003, PG 91 – O romance do século XIX na televisão: observações sobre a adaptação de Os Maias).
A referência a Guimarães acima tem como pauta uma adaptação literária para a televisão, mas é ponto bastante importante para entendermos que não apenas em adaptações literárias mas qualquer tipo de tradução artística que emerge de uma outra fonte está sujeita às influências de seus tradutores e os mesmos sob influências ao seu redor.
Os quadrinhos não são tão abertos a interpretações no conceito visual, como um livro. Mas tempo e espaço são ferramentas sugeridas pelo seu autor e não impostas por ele. Por exemplo, o tempo de um quadro até outro em uma página de mangá pode sugerir segundos, ou milésimos ou minutos. A condução de tempo é observada e imposto por seu leitor.
(Na imagem: cena da Webcomic original de One punch Man)
Logo se a mesma cena é transposta para anime, o tempo será imposto pelo estúdio e direção responsáveis por aquele projeto. É claro, o mesmo vale para a condução de cena, composição, fotografia, resolução da ação, aplicação do movimento, enfim.
Fora do tom mas no compasso da dança!
Concluindo, fidelidade com a mensagem, com o objetivo e com os preceitos de uma história original em sua adaptação é via de regra. Mas as ferramentas, signos e escolhas de como realizar essa conversão para outra mídia, no fim das contas, é o que torna uma adaptação interessante, por não se limitar aos formatos de uma mídia completamente diferente.
E respondendo a pergunta do início desse texto, Leorio se tornou meu personagem favorito de Hunter x Hunter depois desse episódio. Hoje em dia essa parte da animação poderia até parecer cafona ou “fora do tom”, mas me ajudou quando criança a criar um laço com o personagem e passar a me importar com ele.
Não é uma cena que se encontra no mangá original, e o remake de 2011 decidiu tomar outra abordagem, adaptando “fielmente” o quadrinho. Não é uma crítica ao “novo”, mas é interessante perceber que certas escolhas de abordagem podem engrandecer uma experiência.