Digimon Survive analisado como a Visual Novel que é – Review

Esse demorou, hein? E quando falamos de demora, é possível afirmar que se trata de todos os aspectos possíveis para o jogo. Afinal, ele foi anunciado em 2018 e demorou quatro anos até enfim começar o seu ciclo de marketing, uma vez que quaisquer informações a seu respeito eram até então escassas. Com vários adiamentos por motivos diversos — dentre eles, a pandemia de COVID-19 — Digimon Survive finalmente viu a luz agora em meados de 2022.

Não encare Digimon Survive como um RPG!

O primeiro ponto que é necessário deixar muito claro é que Digimon Survive foi muito mal compreendido por uma parte considerável de seu público interessado. Isso se deve porque o título é, essencialmente, uma visual novel, sendo que os elementos de RPG tático — como Disgaea ou Fire Emblem — estariam pontualmente presentes. Ele nunca foi vendido como um RPG tático efetivo, com sua jogabilidade sendo centralizada em tais sistemas.

Entretanto, isso não impediu com que houvesse expectativa de se jogar um RPG tático no universo de Digimon, o que eventualmente acabou gerando uma decepção por parte da audiência. Esse mal-entendido é até engraçado porque, sem querer, a equipe de desenvolvimento meio que acabou tropeçando em uma ideia com potencial claro e capaz de gerar interesse do público. Contudo, nunca foi a intenção real do time elaborá-la o suficiente para que sustentasse um produto como um todo.

Em determinadas sequências, o jogador é livre para conversar com outros personagens e explorar os locais.

Tendo isso em vista, Digimon Survive precisa ser visto como a visual novel que é. Ou seja, uma forma interativa de contar uma história que comumente se fragmenta em vários caminhos narrativos de acordo com o progresso e as escolhas feitas pelo usuário — que nem sempre pode ser chamado de jogador, visto que há certa discussão a respeito de tal formato ser ou não considerado um jogo, de fato.

Ao contrário de Pokémon, que tem uma faceta universal com algumas variações para públicos específicos, é possível encarar Digimon de duas formas completamente diferentes. Uma delas é a faceta mais infantil, voltada para vender brinquedo para a molecada e com narrativas bem mais leves. A outra é a que observa um potencial mais elaborado no tom abordado, como é o exemplo do anime Tamers ou mesmo do game Digimon Story: Cyber Sleuth. Survive segue mais para essa segunda linha, com uma linha de história menos infantiloide que se permite acobertar alguns temas mais profundos.

A todo momento, Digimon Survive introduz novos mistérios que complicam a trama.

Logo de cara, isso já fica evidente com a construção da atmosfera do enredo como um todo, seu melhor aspecto, ressalta-se. No fundo, nós, leitores dessa novel, sabemos o que são os Digimon, o que é o Digimundo e como funciona toda essa dinâmica tão manjada da franquia. Entretanto, é impossível não comprar a melancolia e o sentimento de incerteza que os personagens sentem por se verem em ambientes hostis, com sensação de abandono completo.

No início da história, nós somos apresentados rapidamente aos personagens principais. O protagonista, Takuma Momozuka, sob os olhos de quem acompanhamos a história, se encontra em um passeio escolar com seus colegas. Fugindo um pouco do itinerário da excursão, o grupo logo se depara com um templo místico construído em homenagem aos chamados Kemonogami (em português, algo como feras divinas).

Com essa informação em mãos, o grupo acaba se separando após cruzar uma neblina misteriosa. Takuma, então, se depara com um Koromon. Parte do grupo vai se reunindo, mas logo surge o perigo trazido por outros Digimon. Isso faz com que Koromon digievolva para Agumon e, assim nos apresenta ao sistema básico de combate de Survive: o de RPG Tático.

As batalhas de Digimon Survive são bem simples de forma proposital, já que elas servem de respiro para as sequências de novel.

Jogabilidade simples, narrativa inversamente proporcional

Quando a gente chega no sistema de RPG tático é que chega também a suposta decepção dos jogadores de Digimon Survive. Como tais sequências servem para dar uma pausa momentânea do storytelling denso. Elas não foram conduzidas no intuito de oferecer desafio ou de sustentar o jogo como um outro lado da moeda das paredes de texto. Na verdade, tais momentos são propositalmente simples e sem muito balanceamento nas mecânicas, uma vez que servem mais como ilustrações das batalhas do que um desafio efetivo.

A sensação, portanto, é como se estivéssemos jogando no modo fácil qualquer RPG tático que seja, já que para superar tais estágios, basta avançar e atacar — de preferência por trás dos inimigos, para aumentar a quantidade causado e otimizar tempo investido na campanha. Pontualmente, é possível utilizar alguns golpes especiais e inclusive digievoluir em batalha, sendo que a transformação se mantém diante da quantidade de SP do monstrinho digital. As possibilidades de digievolução, inclusive, são determinadas por como você se relaciona com os Digimon fora dos momentos de combate, criando uma interligação interessante com os sistemas.

É possível recrutar os Digimon “selvagens” ao acertar as sequências de diálogo com eles.

Outro diferencial é a possibilidade de recrutar alguns Digimon para o nosso time e usá-los em batalhas subsequentes. No caso, basta “conversar” com os inimigos para fomentar vínculos e, selecionando as reações corretas ao diálogo, é possível convidá-lo para a equipe. Ao todo, são mais de cem monstrinhos recrutáveis, o que rende algumas horas adicionais na jogatina, caso você seja do tipo colecionista.

Ele é simples? Com certeza. Isso é um problema? Para a sua proposta, não. Entretanto, algumas decisões de game design poderiam facilitar a nossa vida. Especificamente, a câmera não colabora nem um pouco e mover o cursor pelas células de movimento é sempre um esforço à parte.

A questão básica é que tudo nesse sistema é bastante trivial, fazendo com que seja compreensível a decepção geral. Entretanto, compreender não é necessariamente concordar. Afinal, inexiste razão por trás dessa lamentação, uma vez que Digimon Survive nunca foi vendido como um RPG tático, e sim uma novel.

Algumas escolhas a serem feitas servem para fragmentar a narrativa por diferentes caminhos.

Há, contudo, algo que pesa contra: essa mescla de RPG tático com Visual Novel não é nenhuma novidade, tá? Sakura Wars, por exemplo, já tinha feito isso lá nos idos dos anos 90 e com mais equilíbrio de complexidade para os dois lados. Isso denota que poderia ter rolado um pouco mais de esforço nesse aspecto de jogabilidade prática porque há precedentes de hibridismo entre os gêneros. Ainda assim, é injusto cobrar que Survive seja algo que ele não quer e nunca se propôs a ser.

Considerando o gênero, é muito melhor se deparar com esse modelo de jogabilidade para ilustrar os combates do que aquelas cenas estáticas de batalha comuns em VNs. Aquele showzinho de efeitos baratos na tela enquanto as ilustrações estáticas dos personagens piscam em vermelho e efeitos sonoros de espadas colidindo estouram no fone de ouvido.

Uma vez superadas as batalhas, o formato de Visual Novel logo retorna a reinar na exposição da narrativa básica envolvendo os “digiescolhidos” (entre aspas mesmo). Aos poucos, novas possibilidades vão sendo liberadas, como a escolha de com quais amigos posso gastar o meu tempo de conversa e a de selecionar manualmente qual cenário Takuma deve visitar e investigar no intuito de fazer a trama andar. Algumas escolhas até alteram a rota do enredo, mas a maior parte só fica evidente em uma segunda campanha — e a primeira já é bastante robusta, levando por vota de trinta horas para ser finalizada.

As sequências de Digievolução são um desbunde visual em um jogo naturalmente bastante bonito.

E que história, hein? A parte do RPG tático pode decepcionar aqueles que buscavam por algo a mais. Entretanto, qualquer um que se prezar a prestar atenção no decorrer da aventura vai se deparar com um emaranhado de acontecimentos que seguram a audiência ao trazer um mistério envolvente. O que é a tal névoa, que aparentemente é prejudicial aos seres vivos daquele lugar? Qual é a relação de tempo-espaço entre o mundo das crianças e esse novo mundo? Por que a mitologia por trás dos Digimon os faz atender pelo nome de Kemonogami?

Toda vez que Digimon Survive traz alguma resposta, é sempre acompanhado de algumas novas perguntas e tornam a situação toda ainda mais sufocante. Dadas as devidas proporções, pense em algo próximo a Lain (que, vale lembrar, foi escrito pelo questionável e controverso Chiaki Konaka, também responsável por Digimon Tamers), Paranoia Agent, Boogiepop, Blood-C ou Ergo Proxy.

Os Dokugomon são a primeira batalha levemente mais complicada, mas ainda assim são bem fáceis de lidar.

Uma boa experiência no presente, um bom aprendizado para o futuro!

Talvez o melhor aprendizado de Digimon Survive esteja no infeliz fato de seu lado de RPG tático ter chamado tanto a atenção ao ponto de escancarar que esse deveria ser o caminho a se seguir para um futuro novo jogo e completamente voltado para tal gênero, trabalhando mecânicas específicas e elaboradas para que ele consiga se firmar como um representante legítimo, e não apenas com o flerte geral.

Ademais, como a Visual Novel que é, Survive cumpre o que promete: trazer uma narrativa suficientemente envolvente que quer atingir a parcela mais madura do público de Digimon. Nada mais do que isso. O problema central talvez tenha sido todo o tempo de desenvolvimento gasto no título que. Para o bem ou para o mal, isso acabou gerando toda uma mística à sua volta por conta do mistério que cerceou sua produção. Afinal, como é de praxe da indústria, acredita-se que quanto mais tempo de desenvolvimento você investe, maior é a expectativa e o escopo do seu produto.

O principal problema do combate não está nem na simplicidade proposital, mas no sistema de câmera durante as batalhas.

É uma percepção bastante errônea. Tivesse sido Digimon Survive anunciado e lançado em uma janela de, sei lá, seis meses, é possível ele não fosse recebido como esse banho de água fria todo, como foi considerado. O tempo, contudo, vai mostrar que a quantidade de pressão que colocaram na novel é bastante injusta e ela certamente será lembrado como uma doce e interessantíssima história do multiverso de Digimon. Especialmente se ela, por algum acaso, der origem a um RPG tático de verdade no futuro.

Não que não dê para ser feliz com o que já temos. Dá sim. Só é necessário ter um pouco de paciência e entender que a maior parte do seu tempo será de leitura. E não há problema algum nisso. Pense em um livro interativo — afinal, essa é uma das formas de se enxergar o gênero das Visual Novels.

A Bandai Namco foi parceira e gentilmente nos cedeu uma cópia de análise de Nintendo Switch para a produção deste material. Digimon Survive também está disponível para Xbox One, PC e PlayStation 4.

    Às vezes aparece aleatoriamente pela internet, escrevendo algumas groselhas.