Quantos mangás R$100,00 compram em 2022?

Uma rápida visita a uma banca de jornal ou livraria é o suficiente para confirmar um triste cenário: acompanhar algum lançamento de quadrinhos no Brasil, sobretudo em 2022, é uma tarefa cada vez mais difícil. Com a crise econômica, desvalorização do real e os recorrentes aumentos de preços que impactam todos os setores da economia, colecionar um quadrinho vem se afirmando como um hábito de luxo no Brasil. 

Muitos leitores de quadrinhos, sobretudo de mangás, vêm abandonando coleções ou tendo que escolher, após muitas contas, qual obra conseguirão acompanhar. Por se tratarem de publicações serializadas, ou seja, que contemplam mais de um volume e com periodicidade fixa, colecionar um mangá implica em um gasto mensal que pode durar alguns meses ou muitos anos, dependendo da extensão da obra e de sua periodicidade.

Cada vez menos um hobby e mais um luxo 

A união de aumentos sucessivos de preços e periodicidades menores de publicação vem tirando o sono de muitos leitores. O preço de um mangá é consequência de uma série de dinâmicas que vão além do material e qualidade gráficas utilizadas em determinado título. A decisão de valor praticado comporta também os lucros das editoras, mas também os repasses para licenciante e artista da obra, logística e distribuição, porcentagem do ponto de venda e a manutenção de todas as equipes empregadas pelas editoras (desde  designers e tradutores até as áreas administrativas e comerciais). As proporções entre cada um desses repasses variam conforme a editora e a obra trabalhada, cada qual com suas especificidades. 

Já para o leitor, a relação entre preço e obra abarca outros fatores: além do valor afetivo pela obra,  a qualidade do material gráfico, a periodicidade, a quantidade de volumes, a tiragem são pontos essenciais. Além da dinâmica “preço x qualidade” (que protagoniza por si só uma série de embates entre os leitores e as editoras), a relação entre preço e periodicidade vem sendo uma das maiores problemáticas para o leitor brasileiro de mangás.

Se pegarmos como base de comparação os preços vigentes em 2019, antes da pandemia de COVID-19, os mangás de preços mais baixos oscilavam entre R$15,90 e R$24,90. Com R$100,00 era possível comprar até seis títulos em publicação, dependendo da obra. Já em 2022, com os menores preços variando entre R$29,90 e R$33,90, para comprar três mangás entre os mais baratos será necessário gastar entre R$89,70 e R$101,70. Essa média de valor representa, até abril de 2022, em torno de 8% do salário mínimo vigente no Brasil. 

Trazendo mais um comparativo, agora fora do contexto dos quadrinhos: segundo matéria publicada em março de 2022 pelo Poder360, o preço médio de um botijão de gás no Brasil está em R$112,54. Entre o gasto com um item essencial (entre tantos que aumentaram de preço), e o gasto com histórias em quadrinhos, cada vez menos brasileiros têm podido manter ambos em suas contas mensais. 

O drama da periodicidade e os impactos no mercado nacional

Um dos fatores que mais preocupam leitores, assim que um novo título é anunciado no Brasil, é com relação à sua periodicidade. Com os preços atuais, lançamentos bimestrais vêm permitindo que o público consiga acompanhar mais títulos, intercalando os valores gastos mês a mês. Porém, são muitos os anúncios de mangás com lançamentos mensais, tornando inviável que o brasileiro possa acompanhar os títulos que gostaria. 

Mas e a opção de esperar e não comprar um volume assim que é lançado? Muitas editoras vêm trabalhando com tiragens cada vez menores de seus títulos – sejam por questões estratégicas ou pela própria crise e aumentos sequenciais nos preços de insumos, sobretudo do papel -, logo uma pequena espera pode significar não encontrar mais uma edição e ficar com um buraco na coleção. Ao ponto em que algumas editoras adotam o discurso de que “é melhor comprar assim que sair, pois vai esgotar” – discurso esse, no mínimo, desconexo com a realidade do país no qual essas empresas atuam. Ou seja, é tirado do consumidor o direito de escolha sobre a sua compra, uma vez em que ele corre o risco de não conseguir o produto que deseja ao esperar, por menos tempo que seja, para adquirir um quadrinho. 

Na imagem, alguns mangás disponíveis em uma livraria em São Paulo.

Esse cenário alimenta uma dinâmica predatória de superfaturamento de edições já fora de circulação, sejam por lojistas ou por colecionadores que decidem vender seus quadrinhos, apoiados no discurso da raridade de determinada revista. Muitos leitores aguardam ansiosamente pela reimpressão destas obras que esgotaram rapidamente, mas na maioria das vezes isso não acontece, embora venha ocorrendo com um pouco mais de frequência – com reajustes de preço, podendo custar o dobro do que sua primeira publicação. 

Muitos vêm recorrendo a grandes lojas online para comprar quadrinhos, aproveitando preços promocionais e descontos acumulativos. Embora seja de fato muito atrativo para os leitores, esse movimento de debandada do consumo de quadrinhos por meio destas grandes redes vêm enfraquecido os comércios locais e menores, como bancas de jornal e lojas de quadrinhos – estas últimas, que possuem os quadrinhos como principal produto. A situação das lojas de quadrinhos ficou ainda mais crítica durante a pandemia, sobretudo no período de fechamento de comércios. Algumas lojas se organizaram e lançaram uma campanha de apoio às lojas de quadrinhos, que para além de pontos de venda, representam um importante braço do cenário nacional de quadrinhos, promovendo e fomentando o acesso e reflexão sobre as histórias em quadrinhos. 

(Falta de) acesso em um país de desigualdades

Como mencionado anteriormente, um dos grandes vilões para o aumento sucessivo de preços de mangás em 2022 é o preço do papel. Segundo reportagem publicada pela Folha de São Paulo, nos dois primeiros meses de 2022 a inflação sobre o preço do papel chegou a 65%. Para o leitor final, esse descompasso do valor do papel chega em quadrinhos com tiragens reduzidas e preços constantemente reajustados. Mas fica a dúvida: é possível “fugir” destes aumentos?

A publicação de obras no formato digital pode ser uma outra possibilidade interessante para o consumo de quadrinhos no Brasil. Entretanto, o lançamento oficial de mangás no formato digital no Brasil, ainda que tenha crescido nos últimos anos, segue em passos lentos. Considerando o volume total de títulos publicados no Brasil, somente uma pequena fração de mangás estão disponíveis em formato digital – formato este que implica, muitas vezes, em diferentes contratos e processos de licenciamento com relação ao de uma publicação impressa. 

Tendo em vista a malha de desigualdades que tece o Brasil – que é muito maior e complexo do que o eixo Sul-Sudeste e que as grandes capitais -, o potencial de alcance da mídia impressa é muito maior do que o de publicações digitais. Isso ficou ainda mais evidente durante a pandemia, com alunos enfrentando uma série de dificuldades em manter os estudos por não possuírem acesso à internet ou a celulares e computadores – incluindo em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, que constituem por si só uma imensa rede de contrastes e desigualdades. E mesmo o quadrinho impresso podendo alcançar mais lugares que o digital, a distribuição e disponibilidade de mangás varia muito conforme a região do Brasil, estando longe de ser uniforme. 

Um maior investimento em espaços públicos, como bibliotecas e centros culturais, junto da consolidação de programas de fomento e acesso à leitura são essenciais para que brasileiros de diferentes idades, rendas e localidades possam ter um acesso menos desigual a diferentes objetos culturais, como as histórias em quadrinhos. Muitas iniciativas são organizadas pela própria comunidade, como no caso da Mangateca comunitária no Morro do Fallet, no Rio de Janeiro. O projeto é liderado por Ed Cura, criador da página Anime DICRIA, que mistura mangás e animes com o cotidiano brasileiro. A Mangateca vem contando com o apoio tanto da comunidade como de pessoas de todo o país, para que o projeto possa crescer e oferecer não só uma opção de acesso aos quadrinhos, mas de apoio e fomento à arte e à cultura. Mas é essencial que a esfera pública e que o Estado sejam responsabilizados e cobrados, que promovam condições e espaços favoráveis para a cultura no país. 

A pergunta “quantos mangás você consegue comprar com R$100,00 em 2022?” foi uma dúvida que tive e que me deixou chocado quando fiz as contas. Por enquanto, seguimos fazendo malabarismos para acompanhar um número mínimo de mangás, ao mesmo tempo em que esperamos que o crescimento do mercado de mangás no Brasil, assim como os demais editoriais, incluam o acesso do público aos produtos.

 

Videomaker e ilustrador, formado em Design Gráfico, coleciono mangás desde os 9 anos. Fanboy da CLAMP e traumatizado por Nana não ter acabado ainda, tenho grande interesse em pensar quadrinhos e seus contextos sociais. Atualmente pesquiso quadrinhos e diversidade na USP e trabalho com jornalismo