Gintama e a Comédia de Reação

Existe um tipo bastante curioso de humor presente nos animes japoneses. Tente imaginar a seguinte cena: uma personagem diz algo absurdo (uma piada de exagero, por exemplo) e rapidamente uma segunda personagem surge e critica a piada da primeira, por falta de nome melhor, vamos chamar isso de “comédia de reação” para facilitar, na qual algo cômico acontece e de imediato um personagem periférico reage e contesta a situação durante a cena.

Mas antes de tudo:

Gintama é originalmente um mangá criado e desenvolvido pelo mangaká Hideaki Sorachi no ano de 2003 para a revista Weekly Shonen Jump. Posteriormente, ganhou uma adaptação animada produzida pelo estúdio Sunrise, mas numa montanha russa de cancelamentos e reestreias na TV japonesa, a produção ficou ao cargo do estúdio da Bandai Namco Pictures, em seus últimos anos de produção. Ambientado num Japão feudal futurista no período de pós-guerra (sim, isso tudo mesmo), acompanhamos a história de uma “firma” de faz-tudo dirigida pelo ex-samurai Sakata Gintoki e os seus amigos e funcionários Shimura Shinpachi e a jovem Kagura, que em suas viagens nonsense cheias de parodias, acabam criando um pouco de problemas para a cidade onde moram.

Gintama usa e abusa desse tipo de comédia, fazendo com que a piada esteja enraizada dentro da própria premissa. A estética dessa piada é baseada em dois planos de observação que são construídos em cena: no primeiro vive o humor nonsense, que dentro do espectro da animação é tratado como algo comum para boa parte das personagens, e em segundo plano é construído os protestos aos absurdos que acontecem no primeiro plano (aqui os personagens tomam a posição de observadores da cena/sketch, assim como o público espectador, fazendo com que assim a realidade da sua audiência sirva de base para contestar a “natureza” do seu universo, concluindo assim a piada como um todo).

 

Ok! Foi uma explicação muito palestrinha, né? Tudo bem, resumindo para um jeito muito mais fácil de entender, até para este que está escrevendo, é algo mais ou menos assim:

Sabe aquela pessoa chata que você cometeu o grave erro de chamar para ver um filme? Aquela mesma pessoa que fica apontando para a tela e dizendo algo do tipo “olha a mentirada!”, ou “isso nunca aconteceria!”, mesmo que o filme que vocês estejam assistindo seja de super-heróis, e a “mentirada” seja o fato dos personagens do filme voarem? Gintama traz esse tipo de pessoa, ou melhor, esse tipo de pensamento para o humor da obra, com o intuito de contestar o humor nonsense que ele mesmo constrói, o que não é muito comum para esse tipo de comédia.

O nonsense se apoia em um humor de absurdos, gerar e extrapolar, ou quebrar as expectativas criadas, e como o próprio nome diz, sem se apegar muito à lógica da situação, e a graça está na surpresa enfadonha que esse tipo de comédia gera. Mas quando existe um núcleo que está o tempo todo apontando esse detalhe e o criticando, a piada não deveria simplesmente perder a graça?

Os animes japoneses fazem algo impressionante, eles usam esse elemento não para destruir o humor, mas para, de alguma forma, evidenciar ele ainda mais, é como aquela trilha de risadas nas sitcoms americanas (aqueles seriados de comédia que são gravados geralmente em um estúdio com uma plateia), com a diferença que é a crítica constante que torna tudo ainda mais engraçado, de forma natural e não apelativa, e como se o estúdio/mangaká desse risada das suas próprias soluções.

 

A tal “comédia de reação” pode ser observada em diversos animes, de comédia ou não, talvez não com a mesma intensidade de Gintama, mas pontualmente é comum ver esse tipo de situação acontecer em certas obras. Em Gekkan Shoujo Nozaki-Kun, por exemplo, os personagens não expressam as suas “críticas” às coisas absurdas que eles veem abertamente, mas de vez enquanto somos levados aos pensamentos deles, onde aí sim temos exposta com clareza as suas opiniões.

A tal “comédia de reação” em Gintama, por outro lado, é presente inclusive na estrutura do anime, muitas pessoas da fanbase da obra gostam de dizer que ela não leva nada a sério, e não é bem assim, ou melhor não era bem assim. Uma das maiores piadas da obra era o passado sério e sombrio do mundo e de seus personagens, em contraste com o tempo “presente” do anime, onde todos esses e demais elementos são elevados à comicidade ao extremo.

Em primeiro plano temos o tempo passado, o mesmo  da guerra dos samurais contra os Amanto (os alienígenas que estão invadindo o Japão feudal), e no segundo plano o tempo presente onde nos mostram os personagens e o mundo incorporando as intervenções dos alienígenas na sociedade e realidade depois destes terem vencido a guerra. O “tempo presente” onde tudo é caótico e humoristicamente extrapolado, e dá pra observar que assim como a “comédia de reação” que criamos aqui, os personagens no segundo plano volta e meia olham para o primeiro (o passado) e ficam criticando, é claro que aqui as posições de humor se invertem, mas a estrutura da piada se mantém a mesma.

Os “arcos sérios” de Gintama da mesma forma são só usados como ferramenta de roteiro para o público espectador lembrar que, por baixo da camada maluca, ainda existe aquele período do passado onde tudo era sério e sombrio, e sim!, isso faz parte de uma piada constante da obra, que pode ter sido feita de maneira intencional, mas que sinceramente se tiver sido feita sem intenção, tornaria tudo mais engraçado.

Porém, em suas últimas temporadas o anime acaba pecando um pouco na qualidade, não só de animação (provocada pela troca de estúdio), mas também de texto, refletida inclusive no mangá. É como se o autor tivesse cedido àquilo que o público dizia sobre a obra nunca levar nada a sério, decidindo assim revisitar o passado dos personagens e do cenário e os extrapolar comicamente, assim como fazia no tempo presente. Talvez isso tenha afetado um pouco a estrutura?

E então, tem algum anime que você acha que se enquadra nessa categoria de comédia? Talvez uma sugestão de nome melhor? Enfim, mantenham a alma de prata e a determinação como a de MOKICHI!

 

Revisão: Karin Cavalcante

Kaed, é formado em design(seja lá o que isso queira dizer) e ilustrador de fundo de quintal, gosta de dissecar e falar groselha sobre quadrinhos e animação com piadinhas no meio para descontrair e não parecer um esnobe de monóculo, além de ser uma tiete em tempo integral dos seus artistas favoritos de mangá. Para conferir um rabisco ou outro desse desocupado, confira o @dudesken no Instagram.