Corações Sujos: A Ponta do Iceberg

O fim da Segunda Guerra Mundial deu início à guerra secreta dos imigrantes japoneses no Brasil.

Hoje vamos trocar animes por filmes e falar de um filme “japonês” feito por brasileiros.

Corações Sujos (汚れた心 ) é um filme de 2011 dirigido por Vicente Amorim e baseado no livro de mesmo nome de autoria de Fernando Morais. Com elenco formado em sua maioria por atores japoneses e falado quase que totalmente na língua nipônica, a obra é um caso curioso de filme brasileiro que mais parece ser uma produção do Japão.

A história do filme concentra-se na trajetória do pacato fotógrafo Takahashi, que, assim como muitos outros imigrantes japoneses no Brasil ao final da Segunda Guerra Mundial, se recusava a acreditar na derrota do Japão. Influenciado pelo fanático Coronel Watanabe, Takahashi torna-se membro da Shindo Renmei, uma organização que afirmava que o Japão venceu, e que as notícias da rendição do país aos Aliados nada mais eram que propaganda inimiga. De acordo com a Shindo Renmei, todos os japoneses que acreditassem em tal “propaganda” eram traidores, “corações sujos”, e deviam ser punidos com a morte.

kachigumi

Para quem não sabe, a Shindo Renmei realmente existiu. Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, os imigrantes japoneses no Brasil se dividiram em kachigumi (vitoristas), aqueles que acreditavam que o Japão vencera, e makegumi (derrotistas), aqueles que aceitavam a verdade.  Os kachigumi formaram a Shindo Renmei. Entre janeiro de 1946 a fevereiro de 1947, a organização aterrorizou os makegumi. Batalhões de matadores, os tokkotai, percorreram o estado de São Paulo executando 23 pessoas e deixando 150 feridos, números assustadores para a época. O DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) prendeu mais de 30 mil imigrantes suspeitos dos crimes e condenou 381 a penas que variavam de um a trinta anos de prisão. Foram eventos que chegaram a afetar até mesmo a Assembléia Nacional Constituinte.

Diferente do livro, que é de natureza jornalística, o filme Corações Sujos tem seu foco nos dramas pessoais dos personagens principais, pessoas que sofreram na alma e na carne os efeitos e as consequências da guerra mesmo estando a milhares de quilômetros de distância do conflito. Por um lado perdeu-se a dimensão dos acontecimentos: o filme dá a impressão de que a Shindo Renmei e suas execuções eram um fenômeno localizado, concentrado apenas na vila onde moravam os personagens principais. É como se fosse a ponta de um iceberg. Por outro, a ambientação limitada possibilitou uma narrativa mais coesa, e um bom aproveitamento de atores competentes e experientes, causando uma empatia maior no espectador.

takasan

Tsuyoshi Ihara no papel do protagonista faz um bom trabalho, expressando no olhar e nos gestos diversas emoções. Seu Takahashi é um homem pacato, quase passivo, que se deixa levar ao crime pelo fanatismo dos outros e por sua própria teimosia. Ihara tem uma longa lista de filmes e séries em seu currículo, entre eles o premiado Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood.

Takako Tokiwa interpreta a esposa de Takahashi, Miyuki. Não há como não se compadecer ao ver o horror e a quase loucura para os quais ela é arrastada por conta de seu amor e lealdade ao marido. É notável como a linguagem corporal vai se transformando diante dos acontecimentos: inicialmente suave e relaxada, fica gradualmente mais rígida, fechada, quase robótica. Os fãs de Naoki Urasawa talvez a tenham visto na adaptação para filme live action do manga 20th Century Boys, no papel de Yukiji. Além disso, ela também participou de muitos outros filmes e séries de TV.

takako tokiwa

Eiji Okuda, com toda a sua experiência em filmes, séries e doramas, merecia ter o seu personagem, o Coronel Watanabe, um pouco mais desenvolvido. A maior parte de suas cenas tinha foco apenas no seu fanatismo, chegando perigosamente próximo de reduzí-lo a um vilão caricato. Da metade para o final do filme isso muda um pouco, melhorando o personagem.

Shun Sugata, o makegumi Sasaki, talvez seja o rosto mais conhecido do elenco. Trabalhou em filmes como Kill Bill e O Último Samurai. Quem gosta de Tokusatsu talvez se lembre dele como Kamen Rider ZX. Mesmo com menos tempo em cena do que os demais citados, ele consegue nos fazer simpatizar com Sasaki e torcer para que ele não seja executado.

fogo

No geral, Corações Sujos é um ótimo filme, com bons atores, narrativa coesa e parte técnica competente. Às vezes a trilha sonora exagera um pouco no sentimentalismo e se torna invasiva, e o efeito de lente usado em algumas cenas mais atrapalha do que enriquece a experiência. Alguns pontos poderiam ser mais trabalhados como o já citado Coronel Watanabe. Mas, pesando prós e contras, o saldo é positivo. É um filme recomendado para quem gosta de dramas com fundo histórico.

Corações Sujos (2011)
Direção: Vicente Amorim
Elenco: Tsuyoshi Ihara, Takako Tokiwa, Eiji Okuda, Shun Sugata, Kimiko Yo, Celine Fukumoto, Ken Kaneko, Issamu Yazaki, Eduardo Moscovis, André Frateschi.

Sobre liviasuguihara

Instrutora de inglês, "arteira", amante de animes e mangás. Você também me encontra no Twitter (@lks46), no Behance (https://www.behance.net/lksugui7ac5), e no Instagram (liviasuguihara).

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8 thoughts on “Corações Sujos: A Ponta do Iceberg”

  1. Eu nunca soube da existência dessa organização, é incrível como os fatos históricos sempre vão ganhando mais profundidade e significado. Texto maravilhoso Lívia!

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