Redescobrindo Ishinomori

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Post novo, comemorando a obra de Shotaro Ishinomori. Desta vez, com um convidado especial, provavelmente o maior conhecedor da obra de Ishinomori em língua portuguesa, Felipe Onodera! Complementando a minha matéria anterior, que dava uma geral na carreira do Rei dos Mangás, agora Felipe nos fala sobre os mangás de Ishinomori que mesmo os mais conhecedores de mangá desconhecem. Bora ver!

Redescobrindo Ishinomori

por Felipe Onodera

É possível haver entusiastas que tenham a ambição de colecionar todas as páginas ilustradas ou palavras escritas pelo seu autor favorito, em qualquer categoria que se distribuam. Mas imagino que a maior parte das pessoas são menos ambiciosas. Quando se fala de Shotaro Ishinomori, algumas pessoas estarão mais interessadas em suas obras de ficção científica do que em seus mangás de mistério, ou nos inúmeros seriados televisivos que levam o seu nome nos créditos, mas não em sua carreira como artista de mangá. De todo modo, esse texto foi preparado com o intuito de apresentar algumas obras consideradas importantes, mas em raras as ocasiões são citadas.

Sandarabocchi

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Um exemplo curioso é o de Sandarabocchi, publicado no almanaque para leitores maduros Big Comic. Tendo surgido durante a popularização do mangá de época e da ascensão de artistas como Goseki Kojima e Sanpei Shirato, a maior parte das histórias ambientadas no Japão feudal (jidaimono) narrava histórias de ninjas e samurais vivendo em uma zona de guerra onde lutar era um meio de vida para toda uma classe de pessoas. Ao invés de ir de acordo com a demanda, Ishinomori decidiu focar sua história nos detalhes históricos e na psicologia humana, sendo este um dos poucos exemplos do gênero onde o protagonista não empunhava uma espada. A série perdurou sete anos na Big Comic e contava a história de um artesão dedicado à confecção de peças de bambu e que trabalhava como um cobrador de dívidas durante as noites em Yoshiwara, um dos diversos distritos da antiga Edo. A série renunciava de toda a ação em favor do desenvolvimento das personagens e cuidadoso detalhamento das vidas de pessoas comuns.

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Sabu to Ichi Torimono Hikae

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O segundo título a ser apresentado é outro que, em minha opinião, dispensaria apresentações. Tendo sido o ganhador do Shogakukan Manga Award em 1968, foi adaptado no primeiro anime dirigido ao público adulto no Japão (e que lançou a carreira do jovem Rintaro, um dos mais renomados diretores de animação do Japão, responsável por obras como Galaxy Express 999, Captain Harlock e Metropolis). Há, também, duas adaptações em live-action e uma história de mais de dez anos nas páginas da Shonen Sunday e, posteriormente, Big Comic, o seu lar por direito. Estou falando de Sabu to Ichi Torimono Hikae (As Notas de Prisão de Sabu e Ichi), também conhecido como Sabu & Ichi, nome com o qual concorreu no festival de Angouleme, na França.

O mangá narra em episódios auto conclusivos a história de Sabu, um detetive do período Edo, que dedica sua vida a resolver crimes que raramente acabam com um final feliz. Mas os holofotes da série acabam pendendo para outro personagem, Matsunoichi, um massagista cego e também exímio espadachim, que protagoniza alguns dos capítulos mais interessantes do mangá. O elenco de apoio se completa com o chefe de Sabu, Saheiji e também sua filha, Midori, que vem a se tornar noiva de Sabu no decorrer da série. Muitos mistérios são resolvidos durante partidas de Go entre Sabu e Ichi, que utilizam esses momentos para juntar as peças que compõem o caso da semana e encontrar um modo de prender o culpado. Mas a solução quase nunca é tão simples quanto parece e os mais grotescos crimes são cometidos diariamente em Edo, a verdade sempre vem de onde menos se espera.

A dinâmica entre os dois protagonistas é um dos pontos altos da série, já que Ichi funciona como uma extensão do cérebro de Sabu. Sendo jovem e inexperiente, e, ao mesmo tempo, astuto e com forte senso de justiça, Sabu frequentemente utiliza a ajuda de seu amigo para juntar as pontas soltas e resolver casos intrincados. Às vezes, a solução requer certa quantidade de ação, e, logo em seguida, aparece Ichi com a espada escondida e preparado para livrar seu companheiro de situações de quase morte, mas não a tempo de impedir que a maior parte desses casos termine em verdadeiras tragédias.

As histórias são muito bem narradas e ainda vêm acompanhadas de magistral acabamento gráfico. A quantidade de recursos visuais, metáforas, desenhos oníricos e jogos de câmera na escolha de ângulos e disposições dos quadros são de deixar qualquer um extasiado. A genialidade de Ishinomori pode ser demonstrada em cada pequeno quadro desse título, e, quase 40 anos depois, não se vê mangás com essa qualidade narrativa. Como se não bastasse, esse foi o primeiro trabalho de Ishinomori dirigido ao público adulto, e o resultado inicial é formidável e mostra maior capacidade de se adaptar a novos tempos do que o seu mentor, Osamu Tezuka, que ainda teria muito caminho pela frente para voltar ao gosto do público. Sabu to Ichi é uma dessas obras que nunca perde a capacidade de surpreender seus leitores. Sem dúvida, um título magistral e que sozinho já valeria a alcunha de “Rei do Mangá” para Shotaro Ishinomori.

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HOTEL

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Outro título que marcou presença nas páginas da Big Comic, HOTEL foi a obra mais representativa dos últimos anos de carreira de Shotaro Ishinomori. É difícil determinar exatamente quando foi que a série começou a ser publicada, já que encontrei fontes que apontam 1982 e outras que dizem 1985, ou 1990, quando a série de televisão baseada no mangá começou a ser exibida. Mesmo hoje em dia HOTEL ainda aparece em algumas edições especiais comemorativas da Big Comic. E o já citado seriado televisivo ficou no ar por mais de 15 anos, sendo uma das mais longas produções para TV do Japão, e também a mais longa adaptação baseada em uma obra de Ishinomori. A série é focada na equipe de administração do luxuoso Hotel Platon, que lida diariamente com todos os tipos de incidentes que acontecem entre as paredes do hotel. É difícil definir quem são os protagonistas aqui, mas, para fins práticos, temos o gerente Todo e seu assistente Ippei Akagawa, que vai crescendo e sendo promovido com o decorrer da série, embora jamais deixe de pensar sobre si mesmo como um novato.

O Hotel Platon passa por várias mudanças ao longo da série, com os seus protagonistas mudando de posição ao mesmo tempo em que novos personagens são introduzidos na equipe. O próprio edifício muda ao decorrer das histórias, até se tornar o atual Hillside Platon Hotel. Isso acontece mais ou menos no meio da série e se mantém constante daí em diante. O mesmo vale também para os personagens que lá trabalham. Em cada novo capítulo, são introduzidos dois ou mais novos personagens, incluindo uma mulher do plantão médico, o barman da sala de estar, o chefe de manutenção, a mulher da limpeza e vários outros personagens, cada um com uma história pessoal a ser explorada. O Platon é um edifício gigantesco, com direito a piscina olímpica, suítes presidenciais, central de ventilação personalizada e tudo que se preze a um hotel de primeira categoria.
Cada capítulo conta uma história e a equipe que compõe o hotel não é infalível. O grande apelo desse título é que todos os personagens são humanos e deixam isso transparecer. Mas o foco dessas histórias nem sempre está na equipe, e sim em um ou mais dos inúmeros hóspedes que o hotel comporta diariamente. E sendo esse um mangá para leitores adultos, tudo que se espera que aconteça entre as quatro paredes de um quarto de hotel pode, de fato, acontecer. Por exemplo, um casal sadomasoquista aluga um quarto e levam um médico junto para o caso de alguma emergência, na qual um dos dois possa ser sufocado durante o ato sexual. Músicos, celebridades ou políticos que tem algo a esconder da mídia; um autor de livros que viveu trancado em seu quarto por anos após a morte da esposa; ou até um casal de grã-finos que acusam uma senhora idosa da limpeza de ter roubada uma câmera de luxo. É impensável querer resumir o que acontece em cada um dos volumes de HOTEL, e olha que todas essas histórias estão reunidas somente no primeiro.

Bom, já conhecido o tema da história, o capítulo de abertura do mangá começa contando que um hotel é um organismo vivo. Ele contém sonhos e esperanças, sucessos e traições. Uma das primeiras histórias envolve um ator famoso seguido por uma cantora incógnita que fazem o check-in no saguão do hotel. A cantora é reconhecida por um fã, que a segue até seu quarto. O ator e a cantora estão no meio de uma cena de sexo quando o fã inadvertidamente invade o quarto em que eles se encontram. De inicio, sua intenção era apenas de que ela autografasse um pôster, mas de repente ele empunha uma grande faca e amarra os dois amantes, enquanto discursa sobre como não pode entender que a mulher idealizada de seus sonhos possa ter se sujeitado àquilo. Como se não bastasse, esse é apenas um de três atos que se sucedem ainda no primeiro capítulo, envolvendo três tipos de hóspedes diferentes. As histórias se dividem e encontra cada uma sua conclusão ao final do capítulo. Mas isso é só uma das muitas possibilidades narrativas que a série tem a oferecer.

Avaliando o departamento artístico, é óbvio que esse é um Ishinomori bem diferente dos tempos de Cyborg 009 ou Kamen Rider. O seu estilo em HOTEL é bem próprio e pode ser simples ou detalhado, dependendo da ocasião, utilizando de linhas finas ou grossas. É curioso perceber o longo caminho que Ishinomori percorreu para chegar até aqui, até porque HOTEL desfrutou de grande popularidade, e recebeu diversas premiações durante os seus anos nas páginas da Big Comic. O seriado baseado na série é um marco dos anos 90 no Japão e possivelmente perdurou por mais tempo no ar do que o próprio Kamen Rider, que passou muitos de seus longos anos no limbo. Junto do mangá policial Omiya-san, HOTEL é, provavelmente, a mais bem sucedida inclusão de Ishinomori no mundo dos quadrinhos adultos, assim como uma de suas séries mais influentes. A arte é muito boa, os personagens não se parecem em nada uns com os outros e as histórias são honestas no modo como um hotel de verdade deve operar. Se você está cansado de histórias de super-heróis contra organizações criminosas, HOTEL é o título ideal pra você.

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Mutant Sabu

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Se engana quem acha que o primeiro grande shonen de ficção científica criado por Ishinomori foi Cyborg 009. Antes mesmo de Kamen Rider, Goranger ou Kikaider, havia outro personagem também bastante popular nos anos 60 e seu nome era Mutant Sabu. Sim, hoje são poucas as pessoas que conhecem ou já ouviram falar dessa série, mas ela é lembrada com grande apreço por quem cresceu naquela época e sonhava um dia criar seus próprios heróis de mangá. Enquanto Osamu Tezuka tinha seu Astro Boy, o menino-robô com super-poderes, e Mitsuteru Yokoyama tinha o seu Tetsujin 28-Go, o primeiro robô gigante da história do mangá, Ishinomori decidiu inovar com um novo tipo de herói: um garoto com poderes telecinéticos e telepáticos. Originalmente criado em 1961 para a revista Shoujo, Mutant Sabu tornou-se um título bastante popular nos primórdios da Shonen Sunday. Para se ter uma ideia de sua influência, Sabu foi o primeiro personagem com poderes psíquicos do mangá e o primeiro lugar onde Keiko Takemiya, autora de Terra E…(ou Toward the Terra, como também é conhecido), ouviu falar de telepatia e outros termos comumente empregados na sua famosa obra de ficção científica.

O mangá começa contando que a humanidade surgiu há milhares de anos. Num passado remoto, os primeiro seres humanos eram mais próximos das bestas do que o homem moderno que conhecemos hoje. Eles não possuíam linguagem, mas de alguma forma precisavam transmitir seus pensamentos um para o outro. Eles só podiam se comunicar com as próprias mentes e as palavras que de lá vinham, a esse método a parapsicologia chamou telepatia. Mas isso não significaria que a humanidade regrediu ao invés de evoluir? Nós herdamos os genes de nossos pais e avós, passados de geração para geração, mas nenhum sinal dessa antiga habilidade parece ter prevalecido no gênero humano. Mas há um garoto, um único garoto, sobre o qual as leis de Darwin não se aplicam, e o seu nome é Saburo Kazeta, ou simplesmente, Sabu. Este garoto regrediu aos tempos primitivos ou é uma nova forma de vida criada para o futuro?

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Sabu ainda não conhece sua verdadeira natureza, mas, por ironia do destino, ele se envolve em um acidente de carro e é gravemente ferido. O responsável é o motorista de uma família abastada que transportava Mari Suzuga, a jovem filha do patriarca da família. Após levá-lo imediatamente para o hospital, os médicos afirmam que a condição de Sabu é fatal e que ele precisará imediatamente de transfusão de sangue. Mari é a única com o tipo sanguíneo compatível com o de Sabu e decide ajuda-lo, sentindo-se culpada por sua condição. O garoto não só se recupera miraculosamente como descobre que pode ler pensamentos. Depois de uma semana desacordado, ele é surpreendido com o fato do sequestro de sua salvadora. O pai de Mari é o dono de uma famosa companhia de automóveis que acaba de desenvolver um novo design revolucionário para a indústria. Tendo isso chegado aos ouvidos da concorrência, eles organizaram o sequestro em troca do projeto para o novo veículo. Mas Sabu se infiltra na organização e consegue salvá-la com a ajuda de seus recém-descobertos poderes.

Ao retornar para a mansão dos Suzuga, Sabu encontra a mãe de Mari, que explica que a garota sempre teve saúde frágil. Há vinte anos, ela esteve em uma misteriosa explosão de luz ocorrida em Yokohama e especulações diversas apontavam um OVNI como a causa do fenômeno. Para a surpresa da mulher, Sabu diz que sua mãe também esteve em Yokohama no dia desse evento. Nesse momento, Suzuga, o pai de Mari, aparece junto com seu assistente e Sabu consegue ler os pensamentos deste e descobrir que se tratava do espião infiltrado na companhia o tempo inteiro. Surpreso com a habilidade incomum do garoto, Suzuga o convida para se tornar espião em prol de sua companhia, mas Sabu recusa a oferta. Enquanto isso, o espião que ele havia desmascarado é desprezado e abandonado por seus chefes, por não precisarem mais dos seus serviços. O espião decide se livrar também de Sabu, ao mesmo tempo em que o Sindicato responsável por toda a conspiração começa a ter curiosidade pelo garoto que sabe ler mentes e consegue movimentar objetos por levitação.

A história prossegue e se descobre que o pai de Mari não é exatamente o que parece, e também está envolvido com a sua própria cota de atividades ilícitas praticadas em favor da própria companhia. Sabu ajuda Mari a livrar-se de sua condição mediante uma transfusão de sangue e descobre que ela também possui as mesmo habilidades, que apenas estavam adormecidas em seu corpo. De alguma forma a transfusão havia provocado a reação que fez com esse poderes viessem a tona. Sabu mais vez decide invadir o sindicato e pôr um fim às suas atividades ilegais de uma vez por todas. Após se despedir de Mari, ele decide viajar pelo mundo em busca de outros seres humanos como ele e impedir que suas habilidades sejam usadas de maneira errada. Daí em diante, ele fará novos inimigos, se envolverá em disputas internacionais, desvendará fenômenos cada vez mais estranhos e misteriosos e até se tornará o capitão de seu próprio navio, jogador profissional de beisebol e espião com identidade dupla. Mutant Sabu é um produto de seu tempo, quanto a isso não há dúvidas, mas também marcou uma geração e é entretenimento de primeira qualidade. Ideal para quem busca uma aventura leve e sem grandes pretensões, mas que, ainda assim, pode ser uma leitura muito proveitosa, e um pequeno pedaço da história do mangá como um todo.

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No Gyabbo!, leia sobre Skullman.

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