O Japão que você devia conhecer: Ai Ijima, o sexo platônico

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Yo!

Mais um OJQVDC (uma abreviação que não diz nada, não é?), falando mais de personalidades-chave da cultura japonesa que você precisa conhecer pra entender mais um pouco sobre o Japão. Desta vez sobre a ex-atriz pornô, personalidade de televisão e escritora (ou não) de um best-seller, Ai Ijima.

Fruto da sociedade conturbada que o Japão apresentava já na década de 90, Ai Ijima é conhecida no Japão principalmente como personalidade da televisão, onde era comentarista em programas e até apresentou alguns, com seu jeito direto, sem meias-palavras, apesar de seu semblante sempre calmo. Os mais velhos, no entanto, a conhecem como uma das mais famosas atrizes da indústria pornográfica japonesa na época, linda, jovem e completamente sem pudor. 47463113E só em 2000 é que o grande público saberia mais sobre a vida que teve Ijima, quando o best-seller Platonic Sex (Editora: Shogakukan) foi lançado, um escandaloso relato auto-biográfico sobre uma vida de tristeza, estupro e amores impossíveis. O livro não demorou a se tornar um dos maiores sucessos da época, virando um longa metragem e um seriado televisivo no ano seguinte.

Seu nome real é Matsue Okubo. Nasceu em uma família comum de classe média, onde teve uma vida como a de tantas crianças da época, com as cobranças e desilusões da época. Os atritos com o pai, que a agredia fisicamente e verbalmente levaram ela a fugir de casa aos 14 anos, se refugiando nos bairros mais escuros de Tóquio. Lá, ela fez amigos como ela, que não tinham espaço em suas casas, que não encontravam nada que criasse alguma identificação na vida. O começo da década de noventa no Japão criou uma geração de crianças revoltadas. Filhos dos filhos do Baby Boom japonês, foram criados por pessoas que viveram em um Japão ainda decadente, se reerguendo das mazelas da guerra. E os pais exigiam uma postura e um esforço que não condizia com a realidade delas.

Durante o final da década de oitenta e os primeiros anos da década de 90, Ijima fez programa nas ruas, o que é conhecido como Enjo Kousai, homens mais velhos que “dão mesadas” para meninas menores de idade em troca de favores, em geral, sexuais. Ijima morou na rua, morou de favor e depois, morou com um namorado. Quando ele morreu, foi para a rua de novo. E então, com 16 anos, ela começou a trabalhar no mizu shoubai.

Mizu Shoubai

O termo se refere ao “trabalho de vender água”. Literalmente traduzido como “Mercado de água”, o mizu shoubai é um fenômeno japonês. Não chega a ser uma prostituição, o negócio consiste em agradar os clientes de um bar, fazendo eles pedirem mais bebida, petiscos, fazer eles abrirem a carteira. E Ijima era boa nisso, tinha muito carisma e sabia usar as palavras e os gestos certos, mesmo sendo apenas uma adolescente.

Não é comum trabalhar no ramo tão jovem, ainda mais que a lei japonesa proíbe bebida alcoólica para menores de 20 anos. Outros tempos, de fiscalização bem mais branda. Foi durante essa época que ela mudou seu nome para Ai Ijima. Recebeu este nome da dona do estabelecimento. Ai, amor em japonês, porque ela deveria ser amada por todos. Ela chegou a trocar oficialmente o nome. E nos anos que passou em Kabuki-cho, o bairro proibido de Tóquio, ela continuava perdida.

Aos 20 anos, ela recebeu uma proposta. Ganhar os rios de dinheiro que a pornografia prometia.

AV

Em 1992, Ai Ijima deixou de ser a menina que brilhava em Kabuki-cho para se tornar o sucesso meteórico dos videos de sexo explícito. Sua aparência jovial e linda fez sucesso e a tornou o maior nome da indústria até aquele momento. Era muito difícil ter garotas tão bonitas naquele mercado, e Ijima tinha um algo mais, algo que lhe deixava mais próxima das idols da época, o que só aumentava a fantasia. Hoje, ela seria uma menina moe, com voz de anime e corpo de menina, mas com atitude e desejos de uma mulher insaciável. O prato predileto dos japoneses.

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Mas a carreira durou pouco. Em menos de um ano, sua presença alcançou os produtores do programa Tunnels no Minasan no Okagedesu, programa de horário nobre da TV japonesa que dura até hoje, com a dupla de comediantes chamada Tunnels, famosos pela paródia de Kamen Rider, Kamen Norida. Um deles, Noritake Kinashi, era fã de Ijima e lhe abriu as portas da televisão.

Talento

Sem muito pudor, ela não negou fazer parte do humorístico picante Gilgamesh, onde ficou conhecida como “T-Back no Joou” (A Rainha do Fio Dental) e fazia um quadro que sempre terminava com a bunda de Ijima exposta. Mas não demorou muito para ela começar a fazer papéis mais comedidos e a aparecer como “talento”, como são chamadas as personalidades de televisão.

Ela foi a primeira atriz pornô a fazer o caminho para o palco das televisões, seguido por tantas hoje em dia. Nunca escondeu ou teve vergonha de seu passado e foi sua postura extremamente sincera que acabou se sobrepondo ao passado. Em poucos anos, o grande público mal lembrava que ela havia sido uma atriz de filmes eróticos. No lugar, vinha uma comentarista que misturava uma certa doçura com um veneno mortal e bons argumentos. Ela falava sobre sociedade, política, show business… o que fosse, sem temer nada. Também ficou conhecida por ser uma fã doente de Gundam, chegando a entrevistar o criador, Yoshiyuki Tomino, em uma ocasião. Também entrevistou Mamoru Oshii e mantinha amizade com os dois.

Mais ou menos nessa época que seu romance com o ex-SMAP Katsuyuki Mori veio à público. O SMAP é provavelmente a maior boy band do Japão. Eles estrearam em 1991, com seis integrantes. Mori saiu do grupo em 1996, para seguir seu sonho de ser piloto de corrida. Na época, ele já era um dos grandes nomes, um idol, adorado pelas meninas e símbolo de integridade moral e bom mocismo, como prega a agência do SMAP, Johnnies Enterteinment. Por isso, seu romance com Ijima, na época ainda uma atriz pornô flertando com a TV, se tornou um pé no sapato, principalmente para os outros membros do grupo, que poderia sofrer a repercussão disso. Nunca divulgaram que membro foi, mas um deles era extremamente contra o relacionamento e criou uma situação de desconforto ainda maior.

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Mori foi Cisne em uma peça de teatro dos Cavaleiros do Zodíado. É o segundo da esquerda.

Ijima viu sua sina bater a porta de novo. Quando criança, não teve o amor dos pais. Durante sua adolescência como lixo humano na noite de Tóquio, se apaixonou e viu seu namorado morrer doente. Depois, foi acolhida por outro homem que ela amou muito e que a tirou da rua e deu abrigo e comida sem pedir nada em troca. Ele também morreu jovem, antes de a ver se tornar famosa na TV. Com Mori, ela preferiu cortar os laços do lado dela. No entanto, os amigos mais próximos dizem que ela sempre o considerou o amor da vida dela, tanto que nunca mais teve nenhum caso amoroso de destaque. Mori, ao contrário, se casou em 1998 e teve um filho no mesmo ano. Trecho do livro Platonic Sex

Depois que eu junto meu corpo com o do homem que eu amo e durmo, a solidão me deixa à beira da loucura. E para apagar essa solidão de dentro de mim, eu faço sexo com algum homem qualquer. E quanto mais eu durmo, o grande vazio de dentro de mim se espalha sem controle. Para poder segurar tudo isso, eu vou novamente juntar carnes com alguém. E com um sentimento doce, amando alguém, sou traída, ferida, não consigo me recompor, me torno uma pessoa desprezível. Por que será que o sexo sem amor parece assim, tão interminável?

O caso de Mori e Ijima ainda é envolto em segredos e deve continuar assim. No entanto, uma pessoa com certeza sempre esteve do lado do casal. O líder do SMAP, Masahiro Nakai, apoiava a relação e foi um dos maiores amigos de Mori. Quando ele chocou o público anunciando que iria abandonar a carreira, a agência proibiu os outros membros de falarem dele posteriormente e de sequer estarem ao seu lado na entrevista coletiva. Nakai contrariou seus chefes e se sentou ao lado de Mori, pedindo desculpas às fãs e jornalistas antes de seu companheiro se explicar.

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Anos mais tarde, Nakai teria um programa chamado Nakai Masahiro no KinSma. Ijima era regular do programa, sentando logo ao lado de Nakai e os dois tinham uma grande amizade. Tanto que Ijima escolheu esse programa para ser o seu último.

Sexo Platônico

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Em 2000, Ijima lançaria sua biografia, com o sugestivo nome de Platonic Sex. Extremamente cru, o texto apresentava a vida de Ijima como ninguém sabia até aquele momento. Quando todos já começavam a esquecer que ela havia sido atriz pornô, ela reaviva a memória e ainda adiciona pimenta, em uma trama dolorosa e cheia de uma realidade que borrava o brilho das ribaltas.

No livro, ela contava toda essa trajetória, narrando detalhes de seu estupro ainda muito nova, de quando vendia seu corpo aos 14 anos, das doenças que pegou por causa dessa vida e de como tudo isso afetava sua vida até aquele momento. O livro vendeu um milhão de cópias, se tornando já no ano seguinte, material para um filme com Joe Odagiri (Kamen Rider Kuuga) e Saki Kagami (Kamen Rider Kiva) e para a série televisiva, com Mari Hoshino (Ooku) interpretando Ijima, em duas fases: uma que contava sua adolescência e outra, sua vida adulta, até reencontrar os pais, aos 23 anos.

Nas páginas de Platonic Sex, temos trechos do diário da mãe de Ijima, escritos desde o nascimento até os dias depois do sumiço da filha. Ela expõe sua impotência contra o pai, coisa de uma sociedade extremamente machista. Ao contrário do que pode parecer, o livro fez sucesso entre as mulheres e criou uma nova imagem para Ijima: a mulher que venceu na vida, derrotando o machismo com muita luta.

Porém, muita coisa ainda é duvidosa. A própria autoria do livro, por exemplo. Em entrevista, Ijima foi confrontada com a pergunta “qual o capítulo do livro que você indicaria?” e respondeu “Não sei, ainda não li ele”, com sua sinceridade de sempre. Mesmo que um ghost writer tenha escrito o livro, a maior parte das histórias são confirmadas por ela e por outra escritora, uma amiga da época do Mizu Shoubai. No entanto, o próprio livro entrega que muito ainda havia sido colocado debaixo do tapete.

Um filme foi chamado de “Platonic Sex brasileiro”. Bruna Surfistinha, com Debora Secco, no Japão virou “São Paulo, Sekai de Mottomo Yumei na Shofu” (Em São Paulo, a prostituta mais famosa do mundo). BrunaSurf

Concreto

Durante as investigações de um crime, Ijima foi chamada para interrogatório. O caso era o chocante sequestro de uma menina de 17 anos, que durante 40 dias, foi estuprada por mais de cinco garotos, torturada, espancada e depois, assassinada, jogada num barril e coberta de concreto, que depois foi jogado em uma vala, junto de muito lixo.

Os criminosos, todos menores de idade, eram conhecidos de Ijima, mas também da polícia. Eles já estupravam e brigavam nas ruas por muito tempo, sem limites. Batiam até mesmo nos próprios pais. Mesmo com o crime hediondo, pelas leis do Japão contra menores de idade, todos eles foram soltos em menos de 10 anos, inclusive o mandante e principal culpado. O destino de todos é incerto, mas muitos deles se tornaram homens da máfia japonesa, a Yakuza. Dizem que eles já eram parte, mesmo antes de irem para a cadeia. Um deles, namorado de Ijima na ocasião, é apontado como o namorado que ela narra em seu livro, no capítulo em que um amigo do rapaz a estupra. No final das contas, Ijima saiu ilesa das acusações, mas não da exposição. Havia agora um elo entre ela e a Yakuza, um elo que todo japonês sabe, nunca se parte em vida.

Fim da carreira

20090206205603 Em 2006, Ijima anunciou que iria se aposentar precocemente da carreira de talento para se dedicar primeiro à um tratamento de uma antiga doença e depois, para começar uma nova vida, talvez em Nova Iorque. Ela estava no auge da carreira, talvez não em seu ponto de maior popularidade mas com certeza havia se firmado como uma pessoa importante do meio, o geinoukai, o mundo artístico, que era sua casa, finalmente o lugar que podia chamar de lar.

Tudo parecia muito estranho. Seu último programa foi um especial de despedida do KinSma, relembrando sua passagem e lhe desejando felicidades. Depois das gravações, toda a equipe e artistas foram convidados para uma festa, onde Ai Ijima se despediu e Matsue Okubo retornou. Ela era muito querida da equipe toda e o fim foi em sorrisos manchados em lágrimas.

Algo que na época rondava os bastidores era a infelicidade de Ijima. Apesar de paparicada por várias celebridades, respeitada pelos novatos e amiga até de seus inimigos no showbizz, Ijima parecia mais depressiva que nunca quando decidiu abandonar a carreira. Um pouco antes, ela havia perdido 100 milhões de ienes (um milhão de dólares) das contas de sua empresa, roubado por seu contador. No entanto, fora uma nota em seu blog pessoal, ela não havia nem feito queixa na polícia.

Na véspera de Natal de 2008, a polícia relataria à imprensa a morte de Ai Ijima, em seu apartamento em Shibuya. A data real da morte havia sido dia 15 do mesmo mês, mas ninguém notou sua falta até aquele dia. Ela havia se distanciado de todos e raramente saía à público, no máximo postando em seu blog pessoal, o Porno Hospital. Faleceu aos 36 anos, de pneumonia, sozinha em um apartamento de luxo. Um final triste demais.

Claro que foi o assunto durante os últimos dias do ano, mas só algum tempo depois é que o KinSma, seu programa mais adorado, fez uma homenagem. No final, Nakai se mostrou indignado com o fim que teve Ijima. Ele se culpou, dizendo que devia ter ligado para ela, chamado para um drinque, para desabafar. Ele sabia, era próximo dela. Até hoje o programa homenageia Ijima, com sua cadeira vaga e um programa especial por ano.

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Três momentos de KinSma: a cadeira vazia, a despedida do programa, a despedida final.

Os boatos que permeiam vão desde o suicídio até a Aids. Ijima não tinha a doença até onde se sabe, mas sempre combateu publicamente as DST, principalmente por conhecer elas em sua vida antes da televisão. Sua posição até causava a ira de ex-companheiros de pornografia, como Taka Kato, que dizia que “não podia gostar de alguém que cospe no prato que comeu tantas vezes”.

Outra história mal contada era a de estar sendo pressionada pela Yakuza. Isso explicaria o dinheiro roubado, a depressão, tudo. Mas não há confirmação.

Ela perdeu tudo e depois, perdeu até mais ainda. E deu a volta por cima, se tornando um exemplo para as mulheres japonesas. Mas o que mais permeia sua história, fantástica e triste, acabam sendo as sombras mais densas de uma sociedade que até hoje não se entende.

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7 ideias sobre “O Japão que você devia conhecer: Ai Ijima, o sexo platônico”

  1. A historia dessa mulher e incrível, impressionante as tantas voltas por cima que a Matsue Okubo teve que dar para encontrar a felicidade, uma pena o fim dela ter sido tão triste.

    Fábio, esse livo, Platonic Sex, saiu no Brasil?

  2. Ótimo texto!
    É sempre bom conhecer um pouco mais do mundo lá fora, de pessoas que jamais ouvimos falar, mas que deixaram sua marca na vida de tantas outras.

  3. Parabéns Fabio. O texto ficou muito bom. Mesmo com uma história de vida tão complicada como a dela, você conseguiu passar os principais pontos. Mantenha sempre essa coluna =D

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