A obrigação de ser feliz

Yo!

Hoje, um post mais pensante, sobre um assunto que acho importante nos dias de hoje. A importância que damos em sermos felizes, deixar os outros felizes e não incomodar as pessoas, doa a quem doer. Nos dias de hoje, se tornou comum, até óbvio, a busca pela felicidade. Até mesmo foi proposto uma rídicula lei na qual tornava-se um direito pessoal a busca pela tal da felicidade. E é mais uma prova de que até mesmo as coisas boas, em excesso, fazem mal. Hoje em dia, tudo é feito pensando nessa “busca”. Não podemos frustrar as pessoas, não se pode falhar e as pessoas tentam cada vez mais esconder seu lado imperfeito, maquiando tudo com uma felicidade de rugas treinadas, em que sorrimos educadamente e fazemos isso tanto que quando podemos sorrir de verdade, não conseguimos mais gargalhar.

O excesso de sucesso na vida ou pelo menos a ausência do fracasso tem nos deixado cada dia mais insatisfeitos. Não basta ser bom, tem que ser indiscutivelmente bom, e isso é praticamente impossível. Quando acontece com outra pessoa, torcemos para que algo derrube sua maestria, pois em um pedestal, mesmo quando merecido, nos faz enxergar que somos menos do que ele, em nossa “humildade”. Ser humilde não é mais uma virtude, é uma obrigação. Não se pode voar, porque somos ovelhas.

Somos socialmente mimados quando vozes que dizem “isso é injusto” começam a ter força e vira obrigação dos mais esforçados trabalhar pela felicidade dos menos favorecidos pela força de vontade. Nossa luta por felicidade se torna, em algum ponto, obrigação de lutar pela dos outros. Aprendemos isso culturalmente e nos podamos todo o dia para ajudar a máquina a crescer igualmente.

Mas o pior está no esforço que fazemos para não incomodar as pessoas. Não podemos mostrar seus erros, suas diferenças, piadas são agressivas, problemas são incômodos e as pessoas preferem que tudo seja jogado debaixo do tapete. Não podemos discordar das opiniões porque devemos respeitar. Tentamos justificar ou até embelezar as falhas dos outros, e até mesmo o que não é, de forma alguma, negativo. Dai surgem os neolinguistas, criando palavras que não agridem. Não temos mais empregados, temos colaboradores; sai o chefe, entra o líder. As palavras disfarçam hierarquias, diferenças sociais, físicas, culturais. Temos a obrigação de sermos todos iguais e, consequentemente, felizes com isso. E você acha que é essa a felicidade que merece ser buscada?

Nas histórias de hoje em dia, cada vez menos vemos a figura do derrotado, os finais tristes, o inevitável. Isso tem fugido tanto de nosso imaginário que até perdemos o hábito de ver isso com normalidade na vida real. Buscamos essa felicidade, temos a obrigação de ajudar outros a chegar lá também e no entanto, continuamos nos sentindo vazios. E essa palavra, maldita palavra, continua tão subjetiva e indefinida quanto antes, quando sua busca era um luxo pago apenas com coragem.

E cometemos nossas injustiças nessa luta, veja só, contra a injustiça. Matamos a memória de gerações quando, por exemplo, alteramos a letra de “Atirei o pau no gato” para uma politicamente correta e justa com os bichanos. Seria o equivalente a, sei lá… Lembra do caso da pobre velhinha do “Ecce Homo”, que tentou arrumar a pintura e a condenou para sempre? Estamos hoje fazendo isso com nossa pobre e bastarda cultura, tentando arrumar com muita boa vontade e arruinando essas obras. Independente de apreciar, as obras de nosso passado devem ser preservados em seu estado original, ou o máximo que puder dentro de seu conceito, pelo menos.

Ziraldo ilustra a situação, numa polêmica ilustração.

Ziraldo ilustra a situação, numa polêmica ilustração.

O caso recente de censura politicamente correta em Monteiro Lobato aponta para um horizonte cinzento, repleto de incertezas, mas com certeza cheirando a fogo. Não vai demorar para que sejamos proibidos, não por lei, mas por nós mesmos e essa barreira invisível dos “bons costumes“, de escrever sobre o que nos aflige de verdade, sobre sentimentos que temos escondido, com medo de acharem que estamos sendo incômodos, chatos, emotivos demais, raivosos demais, infantis, perversos, pervertidos, racistas, fascistas, homofóbicos, liberais. Seremos castrados em nossa mais íntima casa, nessa mente que deveria ser só sua ou minha, pra dividir em pensamentos livres e sinceros.

Kimba não foi publicado em muitos países por conter uma representação caricata de tribos africanas.

Como tradutor, uma vez precisei fazer a versão em português de uma carta de Osamu Tezuka, em que ele explicava, sem se desculpar, por que suas obras tinham representações de cunho racista. Essa carta fecha as obras dele, que é considerado o deus do mangá, em sua mais completa compilação. Lá, ele fala sobre o cenário cultural da época em que as obras foram concebidas, a escassez de informação e que representa como a sociedade repercutia em sua visão de determinados assuntos, e as soluções gráficas que eram comuns para traduzir a realidade em quadrinhos. Mas optou por não alterar nenhuma página por esse motivo, mesmo sendo famoso por sempre refazer uma, duas ou até mesmo todas as páginas para a encadernação e em possiveis republicações. Pois não é uma vergonha, como dizem. Pode ser um erro, mas representa uma época, assim como sua história. Apagar e fingir que não aconteceu é fácil se comparar com o trabalho de explicar que aquilo é um trabalho de outra pessoa, afinal, nunca somos os mesmos que éramos anos atrás, pelo menos não os que evoluem.

Se considerarmos quadrinho, cinema, livros e tudo mais como arte popular, ou simplesmente arte, temos que considerar que nem sempre queremos expressar alegria e um mundo feliz, e que as pessoas viveram em contextos diferentes, criando obras com ponto de vista diferentes e que às vezes, pode ser visto como algo errado ou até criminoso hoje, mas não é por isso que devemos vestir as estátuas gregas, limpar o sangue de pinturas antigas e destruir budas com dinamite. É contraditório querer tornar uma arte mais democrática tirando o direito de o artista manter sua visão pessoal e apagando do tempo e da memória coletiva essa história.

Quando Hotaru no Haka ia sair nos cinemas japoneses, a Ghibli fez sua exibição de teste e ficou muito preocupada com o que aconteceu. O filme abalou tanto a platéia que havia o risco de o filme ser um fiasco. A solução seria mudar a história? Não. Felizmente, eles preferiram segurar por mais alguns meses o filme, pelo menos até terminarem o seguinte, Meu vizinho Totoro, que criava exatamente o contrário de Hotaru no Haka, enchendo os expectadores de felicidade, e passou os dois filmes na sequência. Foi uma solução comercial que manteve o lado criativo e ao mesmo tempo, colocou duas obras ímpares nos cinemas ao mesmo tempo.

Claro, minha inteção não é de ver um mundo deprimido, mas sim analisar essa tendêndia de fechar os olhos para os problemas para evitar a fadiga. O que é feito hoje em dia é mirando numa tendência alegre, de festas, orgulho, tolerância, mirando num politicamente correto que nivela o mundo todo e em um nível popular, dentro de um coletivo comum. E para completar esse sentimento de que estamos num mundo ideal, também temos nos distanciado de nossa história, distorcendo o passado para criar uma sensação de realidade perfeita como em uma viagem psicodélica. Num mundo como esse e com as pessoas lutando contra cada “injustiça” do mundo, não é permitido não ser feliz.

Temos a obrigação civil de ser, fazer e manter as outras pessoas felizes, mesmo maquiando nossas cicatrizes semiabertas?

Clarissa, webcomic que conta a história de uma menina que é violentada pelo próprio pai e precisa fingir que está tudo bem. Leia aqui

6 ideias sobre “A obrigação de ser feliz”

  1. Ah, só pra constar, acho interessantíssimo fazer este tipo de post. Principalmente porque neste lugar de nicho que nos acostumamos as pessoas geralmente só falam daquilo que o nicho propõe. Isso faz com haja um comodismo até em o que fazer no seu blog/site. Enfim, parabéns pela ideia!

  2. Eu já passei por uma fase conspiratória. Eu pensava muito e achava que era errado sair sorrindo e ficar contente enquanto há pessoas dominando o mundo e nos ‘manipulando’. Porém, se nós formos pensar que até o fato de buscar a felicidade é algo que esteja sob o domínio de figurões, vamos perder muito tempo achando uma saída para ter o mundo como queremos. Ou o cenário que queremos mudar, seja nossa família, sociedade e algo assim. E, falo por experiência própria, não é legal viver infeliz. Acho que deve haver um meio termo entre ser feliz e ser racional. Se sentir bem com a vida, seja por amor, sexo, profissão, ou qualquer coisa que te satisfaça e dê prazer, é a máxima para atingir o que queremos.

    É o prazer que dá sentido ao que fazemos, levando em conta o senso de pensamento que temos com essa nossa evolução. Mesmo se você quiser achar uma alternativa que te dê prazer anulando a busca pela felicidade, isso demorará no mínimo sua vida inteira. E se este objetivo for altruísta o bastante para apenas querer passá-lo para outras gerações, provavelmente venha a ser esquecido com o tempo. Estar feliz, independentemente de suas teorias sobre estar sendo dominado por algo maior, seja mídia, governo, sociedade, Deus, cu, é, SIM, o bastante para… Não sei, não sei qual seria o objetivo de um ser humano que não se sentir bem, ser feliz ou querer este tipo de coisa para outra pessoa [O que já é bem complexo, levando em conta que nós somos seres individualistas que precisam sustentar a si mesmos, sacam? Sem levar isto para um lado malvado ou tão egoísta…].

    Uma alternativa que parece MAD, mas é plausível, é ser um traficante de armas. Ou exercer alguma profissão independente, talvez com melhores intenções que um traficante, onde, além de ser feliz com o que faz e ter adrenalina em sua vida, você estará apenas sob SEU domínio, manipulando a seu bel-prazer sua felicidade. Quando quiser, sorria. Quando for necessário, seja agressivo. Quando lhe convir, chore. Bem, mas que fique claro que este tipo de assunto é completamente discutível, sempre há controvérsias, polêmicas, pontos fracos e fortes em cada ponto de vista. Não é como se houvesse um jeito certo e mais adequado de fazer tudo. Mas talvez teoricamente haja um modo perfeito para as coisas. Para viver.

    Agora, de um ponto de vista menos bonitinho, há aquele termo sobre mídia, imprensa e outras coisas que formam as tendências do mundo. E na maioria das vezes vemos filmes, seriados, documentários, propagandas, até mesmo animes que têm finais felizes e tudo o mais. Esse tipo de entretenimento tem o intuito de nos mostrar o que queremos ver. Até porque, quando adentramos no mundo de tal obra, esquecemos dos fracassos de nossas vidas e a não emoção com que lidamos com as coisas. Aí, pensamos ser o tal protagonista bonzinho que sempre se dá bem. E isso massageia nosso ego, nossa consciência e nos deixa em uma posição confortável.

    Ainda assim, é legal ser educado, simpático. Não acredito que existam ações exatamente altruístas, na verdade. Mas ser bom com os outros para receber de volta, pode parecer um valor cliché, porque é, mas no fundo está certíssimo. Fazer as coisas serem agradáveis é bom, diferente de comodismo.

    Não digo que devamos elogiar aquele cara que fez a pior comida do mundo. Mas ser gentil na hora de criticar já é bom. Até porque sem críticas não há raciocínio, progresso, incentivo de verdade. Enfim, sejamos racionais. A felicidade é extremamente útil. Se fôssemos mais sinceros, talvez, pudéssemos expurgar as coisas ruins que sentimos para as pessoas sem que precisasse haver hipocrisia no elogio.

    [Não digo que eu seja este exemplo de pessoa. Às vezes tento seguir isto, até porque é complicado andar a favor dos próprios ideais.]

  3. Muito bom, concordo completamente contigo. Hoje em dia todas as palavras tem que ser medidas.

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