Reciclo-Quest 01: Kotetsu Kaburagi, e o Conceito de Carisma

Esta nova coluna, Reciclo-Quest, é a minha tentativa de reparar a falta de desenvolvimento de certos assuntos nos vídeos do Video Quest da semana.
Sempre que algum assunto tenha sido cortado (seja por tempo, ou por ter sido mal desenvolvido durante a gravação, ou seja, não tenha ficado bom o bastante para o vídeo), ou que eu queira tratar de um assunto que eu julgue ser relacionado,  vou usar este espaço para tentar abordá-lo de forma mais completa aqui.
Ou seja, o Reciclo-Quest é uma extensão do Video Quest: ele recicla temas, para que nada de importante passe despercebido. Espero que eu consiga manter essa coluna regularmente.
[Agradecimentos ao fã Leonardo Parise Dias, o @nachozcaoticus, por ter dado inspiração ao nome da coluna]

Durante o último Video Quest, o nº 19 sobre Tiger&Bunny, dissemos que esta é uma série que se sustenta no carisma dos personagens. E isso é um fato: T&B, apesar de ser uma série de ação, com super-heróis de uniforme combatendo o crime, a “ação” mesmo não se faz presente tão frequentemente quanto se esperaria; muito mais que a porrada, o que vemos é o uso constante dos dramas, problemas e pequenas peculiaridades dos relacionamentos inter-pessoais dos seus heróis. Tiger&Bunny é eficiente em nos aproximar deste grupo de pessoas, e nos fazer acreditar que elas são, de fato, “pessoas”, como eu e você.

Mas, não sei quanto a vocês, a mim sempre me pareceu meio nebulosa a idéia de “carisma”. Sempre ouvi que “tal ator é muito carismático” ou “político X não deve ser eleito por não ter carisma com o povo”. Temos até o tal movimento carismático da Igreja Católica, que, misturando ao conceito de carisma dos exemplos acima, sempre me confundiu mais ainda. Quando dúvidas desse tipo me surgem, meu caminho é sempre tentar entender por quais mudanças a palavra passou (palavras mudam de uma maneira assustadora, mas, com um pouco de atenção, dá pra perceber claramente que caminho ela percorreu), e assim, chegar ao que hoje entendemos de tal palavra.

Numa extensa pesquisa (este site ajudou muito, recomendo), descobri que “carisma” tem, sim, origem religiosa. É a qualidade de ser “tocado por Deus”, dotado de graça divina, e, por isso, dotado de poderes sobrenaturais ou sobre-humanos. Não, não estamos falando dos heróis de Tiger&Bunny. O Hundred Power pode até ser considerado “graça divina”, mas não é esse tipo de carisma que falamos quando tentamos definir Kotetsu Kaburagi, por exemplo.

Mas o Sky High, sim.

O sociólogo alemão Max Weber redefiniu o termo “carisma” em seus estudos no começo do século XX. Ele praticamente elimina o cunho religioso original, e substitui, no meu entender (posso estar falando besteira aqui), por um uso voltado à mudança social. Em suas palavras (tradução minha):

O termo ‘carisma’ será aplicado a certa qualidade de uma personalidade individual pela qual ele é considerado extraordinário ou tratado como possuidor de qualidades ou poderes sobrenaturais, sobre-humanos ou pelo menos excepcionais. Estes não são acessíveis para a pessoa normal, mas são considerados como de origem divina ou como exemplares, e baseado nessas qualidades o indivíduo em questão é tratado como líder.

Ou seja: é um indivíduo com qualidades excepcionais, que muitos consideram divino, e que, mais importante, é seguido por muitos, como um líder. De acordo com este livro (The Max Weber Dictionary: Key Words and Central Concepts), “Na sociedade antiga carisma representava ‘a grande força revolucionária’, quebrando com o tradicionalismo e abrindo passagem para a mudança social. Na sociedade moderna esse não é o caso, mesmo que o carisma ainda seja parte da sociedade.” Num outro trecho, temos que “Carisma em sua forma pura é profundamente hostil à ordem existente, especialmente à ordem econômica. Leis e normas vigentes também eram deixadas de lado e substituídas por uma justiça substancial, como nas palavras de Jesus ‘Está escrito… Mas Eu vos digo… ’”

Kamina (Tengen Toppa Gurren Lagann), Griffith (Berserk) e Capitão Harlock (Space Pirate Captain Harlock)

O líder carismático é aquele no qual as pessoas confiam seu futuro, por ele ter uma ideologia, uma personalidade que vai de encontro aos valores de seu tempo. São os revolucionários, que saem da Caverna de Platão (Kamina), que enfrentam estigmas sociais para chegar ao topo (Griffith), que “não lutam em nome de ninguém, apenas em nome de algo no fundo de seus corações“(Harlock).

Mas as línguas e as palavras são dinâmicas. Hoje ainda empregamos, eventualmente, o conceito Weberiano de “carisma” (dizem, por exemplo, que o Lula era um líder carismático, e neste sentido, ele é uma ótima representação do conceito), mas em geral, quando pensamos em carisma, pensamos em idéias vagas que envolvem simpatia, presença marcante, coisas desse tipo. Pensamos em ídolos da música enchendo estádios, grandes atores que levam multidões ao cinema mesmo quando o filme em si é horroroso, apresentadores de televisão que sobrevivem eras no ar mesmo que já ultrapassados.

Existe, sim, o lado comercialmente artificial do carisma (“o mercado da fama pode produzir heróis que são nada mais que celebridades com reputações infladas”), mas existem também pessoas que sabem usar de sua presença, beleza e simpatia para se destacar em diversas áreas. E existem autores e roteiristas que sabem criar personagens que, mesmo fictícios, nos fascinam apenas pela sua presença e pelo seu modo de agir.

[e quase 900 palavras depois, voltamos a Tiger&Bunny]

As pessoas por trás das máscaras

Tiger&Bunny é uma coleção de personagens carismáticos. Praticamente todos do grupo principal de heróis são personagens agradáveis, divertidos, com os quais você acaba, de uma forma ou de outra, se importando. Blue Rose se dobra ao sistema em busca de seu sonho de ser cantora, além de ter uma quedinha por um homem mais velho; Origami Cyclone tem problemas de auto-estima por não se achar à altura dos outros heróis, e se sente culpado por ser herói no lugar de seu amigo mais talentoso (e sua fraqueza de personalidade acaba o tornando a personificação do sistema corrupto: ele não salva ninguém, apenas aparece para mostrar o patrocinador). Dragon Kid não se acha feminina, tem problemas de auto-afirmação como qualquer adolescente, e acaba aprendendo a se aceitar e se permitir. Até mesmo Rock Bison tem sua parcela de carisma (o Urso, na gravação, chegou a dizer que gostava do personagem, pois ele tinha “a aura do Kotetsu”, como se tivesse carisma por associação).

Os autores ganham a atenção do público, e injetam carisma em seus personagens, fazendo com que eles sejam familiares, com que conheçamos os personagens. Não é tão simples quanto parece. A meu ver, por exemplo, Barnaby nunca chega a ser carismático (ou pelo menos não tanto quanto outros personagens) mesmo que acompanhemos praticamente toda a sua vida; pois Barnaby é, em seu conceito, um homem distante e fechado. Ele fica, sim, um pouco mais simpático, conforme vai se abrindo, e se beneficia muito da dinâmica com Kotetsu “Wild Tiger”, mas não chega aos pés deste último.

Esse uniforme é feio demais. Só pode ser de propósito.

Chegamos então a Kotetsu Kaburagi. O Wild Tiger, o herói das antigas, no fim das contas, acaba sendo um modelo Weberiano de líder carismático: mesmo que incompetente, ele conquista quem realmente o conhece, justamente por ter uma ideologia: “Uso meus poderes para proteger as pessoas.” E esta é, sim, uma ideologia contrária ao seu tempo; em um tempo onde o dinheiro e a fama estão acima de objetivos maiores, Kotetsu mantém-se firme aos seus ideais, até ajudando seus amigos a ganharem mais pontos.

Não, Kotetsu não é um líder carismático no universo da série de Tiger&Bunny, pois para a população de Sternbild ele é um herói distante e sem rosto. Além disso, nas palavras do próprio Weber, citado aqui, “carisma é instável […] pois depende de sucesso”, e em Sternbild, Wild Tiger é um fracasso. Mas, para nós, o público que o assiste, Kotetsu é um sucesso constante, pois seus ideais e sua personalidade estão sempre presentes. Ele atrai toda a atenção para si, pois sua presença é muito mais forte que a de todos a seu redor.

Tiger&Bunny, com simplicidade e sem “forçar a barra”, nos aproxima de seus heróis, e os transforma em figuras humanas. E é aí que parece morar o segredo (que apenas parece ser simples) para criar personagens com o tal “carisma”, como o entendemos hoje: criar pessoas de verdade, com ideias, crenças e uma vida que o precede; e converter essas idéias no que realmente faz dos líderes (e dos bons personagens) o que eles são: ações.

Esta nova coluna, Reciclo-Quest, é a minha tentativa de reparar […]

33 thoughts on “Reciclo-Quest 01: Kotetsu Kaburagi, e o Conceito de Carisma”

  1. Saudações

    Devo parabenizá-lo pelo texto, Leonardo.
    Não assisti à este anime, entretanto a postagem está carregada de um modo muito pessoal (e até especial), envolto pela forma como viste a obra.

    Falra de um anime mas pelo seu lado mais “maduro” e “cético” é algo muito raro de se ver atualmente.

    Ótimo post.

    Até mais!

  2. Adorei o post, muito bom! Me fez refletir um bucado sobre esse conceito q eu também sempre achei estranho, mas nunca tinha buscado mais informações. Agradeço por isso!
    Achei bem interessante essa ideia de explorar os temas não abordados no quest. Espero ver mais textos como esse por aqui.

  3. Texto altamente cool, mostra bem a visão pessoal da coisa toda, tem até algumas partes em q eu escuto a voz (dorgas) do Kitsune em vez de só ler as frases, recomendarei sempre q me perguntarem sobre a novo (possível) coluna do blog

  4. Nossa, muito bom o texto, espero que você dê continuidade ao reciclo-quest!
    Eu depois de ler o seu texto e pensar um pouco, diria até mais, que o que as personagens ilustradas, tem em comum, mais que representar um ideal, e mais do que fazermos gostar deles, parece que nos apegamos a eles por que eles fazem depertar na gente algo, todos os citados, eles fazem com que acreditemos em algo dentro de nós.
    Mas muito mais que meramente os ideias os quais eles representam.
    Eles apertam um gatilho dentro de nós que liberta algo.
    algo muito mais simples que um ideal, uma sensação que te dá ao conhecê-los.
    A sensação de que você também pode ser idiota o suficiente de ser quem verdadeiramente é.

  5. Como citei no facebook, não assisti o anime Tiger&Bunny, mesmo assim vim ver como é essa nova coluna e achei fantástica. Sempre quis saber a opinião de vocês em alguns assuntos que infelizmente não eram citados no Vídeo Quest e agora tenho chances de poder ver. Curti a coluna e espero ver ela novamente (tenho certeza que vai ser muito comentada, já que vai tratar de um anime clássico).

    Gostei que você foi a procura do significado de carisma para entender realmente o significado que carisma passa a você. Para mim carisma significa uma qualidade única que um ser tem e que por ter essa qualidade única acaba que atraindo as pessoas fazendo ficarem mais próximas a você. Depois de ler o post fiquei de certo modo confuso, mas tudo bem, com o tempo eu vou entender (espero).

    Até mais.

  6. Muito legal a ideia do post. Realmente faltou falar mais do Kotetsu no video. Acho que se perguntar pra qualquer pessoa todo mundo vai dizer que ele é um personagem carismatico. O Tiger é um personagem é o tipo de personagem que conquista todo mundo que ver o anime.

  7. Como eu desde de pequeno sempre me interessei por coisas que diziam “não ser de criança”
    (Na verdade isso é um preconceito, vamos deixa de subestimar os mais novos, mesmo que não entendam tudo, conseguem às vezes entender em parte, e o que não entenderem, desperta a curiosidade, e os faz gostarem de estudar, pelo menos os que interessa a eles.)

    Acabei por costume nunca me deixando levar por palavras. Sempre busquei entender o contexto em que elas são usadas. Principalmente as de adjetivos. Tipo, nunca soube o real significado da palavra carisma, mas por ler muito e ver sempre ela no meio acabei automaticamente assimilando o seu significado. Adorei, mesmo, a parte da pesquisa: confirmou exatamente o que eu pensava sobre o que era “carisma”. E me deu novas forma de pensar sobre o mesmo. o

    1. E sobre a coluna, gostei porque permite um aprofundamento melhor também do que é passado no vídeo. Digamos que é a versão livro de um filme. Só que pra não ficar repetitivo, coloca só o que não foi pra adaptação no cinema. HAHA (comparação de merda essa)

      Enfim, Iniciativas além do próprio “quest ” são sempre bem vindas.
      Se um dia vier um Audio quest – ou pod quest – e que tenha um propósito claro, obvio – não é pra ter só por ter – seria bem-vindo também.

  8. Poxa muito boa essa análize, pena que ficou só desse tamanho. Quando você começou a se aprofundar um pouco no personagem do Kotetsu, já tava no final xD

    Mas ficou realmente interessante, ficarei na espera por mais recicloquests futuramente.

  9. Gostei muito da área e apoio totalmente a iniciativa! A forma que foi feita o link entre socialismo e historia com o tema foi bem legal. É até bom que se faça isso com outras series, para que as pessoas com o tempo venham a perceber que muitas estorias não são apenas enterimento e sim que possuem uma mensagem por trás da trama!

  10. AAAAAAAAAAEEEEEEEEEEEE VQ é cultura…

    isso é uma abordagem técnica louvável, porque ela DEFINE algo que vocês estão falando, a primeira coisa que aprendi é que: para um conceito não ficar genérico passível de varias interpretações, este conceito tem que quer definido….

    algo sobre discuti sobre personagens Felizes e infelizes: (qual o conceito de feliz e infeliz adotado?)

    Bem ou Mal? (o que é isso no assunto em questão)
    certo e errado? (o que seria esta certo ou seria estar errado)
    certo = justo / errado = injusto ?

    esta são coisas que no primeiro momento TODOS tem uma resposta OBVIA, mas se para para comparar entre as pessoas, cada uma define cada coisa com “ligeira” diferença…. e como elas não acertam entre elas a definição adotada… gera uma bagunça…

    não sei quantas vezes me deparei debatendo “atitudes de personagens” com amigos… e caiamos neste de “ele fez justo” mas foi algo mal…. ele fez algo para o bemmmm mas foi injusto .. e etc…

    VOLTANDO ao assunto…

    Sim o carisma deles para mim estar em eles serem HUMANOS, com qualidade e defeitos, pensamentos claros e Partidos tomados…. ou quando não… dentro da normalidade da indecisão…

    e SIM gostamos de Herois desajeitados, atualmente quase todo HEROI protagonista é desajeitado, não muito serio, ou nada serio (carismático) ja que o serio de mais (o militar) não soa algo carismático… mas com senso de MORALIDADE ou “fazer o JUSTO” acima de tudo… bem reforçado….

    do mesmo modo que “gostamos” (bem eu gosto de alguns) de “anti-heróis” protagonistas “serio, frio e calculista” que tem quase tudo sobre seu controle.

    enfim PARABENS ao este quadro, isso deixa um “ar” mais profissional, (mesmo que vc não sejam, mas tentam “lembrando as palavras do Kitsune”) . seria interessante se a cada VQ vcs fazerem uma enquete rápida sobre os assuntos que ficaram em aberto… e o povo votar no que eles querem um aprofundamento….

  11. olá, gosto muito dos videos de vocês, tenho um pedido vocês poderiam fazer um Video Quest de Bakuman e Mirai Nikki esses animes estão otimos quero ver os comentarios de vocês sobre esses animes!

    vlw acho o trabalho de vocês otimo e muito divertido de ver!!

  12. Bem, gostaria de pedir algo, sou um fã de video quest e sempre assisto, já assisti todos menos um kk, e gostaria de citar sobre a escolha de temas para os próximos VQ, dai me veio na cabeça que depois do 20 (pq ja esta acontecendo a vontação entre 3 titulos) vcs poderiam falar sobre DEATH NOTE, por favor, agradecido desde já *–*

  13. Caralho, brow, mandou MUITO com essa história do carisma. Foi pesquisar e relacionou com os personagens. Parabens, mano. Sérião. Achei muito bom esse RecicloQuest.

  14. Eu não sei se fui só eu ,mas enquanto eu assistia T&B a impressão que o Kotetsu deixou em mim foi de “pai” .Talvez por ele ser realmente um pai e por ser um dos heróis mais velhos eu tive a impressão de que ele meio que “cuidava” dos mais novos ,como no episodio da Blue Rose onde ela queria chutar o balde e falar “chega!” par aquela porra.Mesmo com o Barnaby eu acho que em muitos momentos a postura dele e quase paterna . É lógico que eu posso estar completamente loca achando isso ,mas par mim um pouco da “aura mágica” do Kotetsu está ai.

  15. Faça isso com CdZ… Pois se uma pessoa (aki no Brasil? otaku? impossivel, mas vai lá saber ‘-‘) q não conheça CdZ ver o video, nem vai saber do enredo, se está ou não acabada, qdos episódios são, qtas fases são… vcs SEMPRE falam isso nos outros videos (ou quase), falta isso… Tááá´… Uma pesquisa resolve, mas se vcs querem fazer algo, q façam o + completo possível, não? XD

  16. Haha, incrivel capacidade de escrita e argumentação,você mesmo se mostrou alguém capaz de ser julgado com as características positivas que citou, continue com o bom trabalho,apos ver esse anime devido pela indicação realmente pretendo frequentar aqui mais e ouvir mais recomendações futuras.
    Abraço, Rafael

  17. A mesma coisa que se faz com pessoas políticas que desejam se tornarem carismáticas:
    financiam/apoiam a formação de “arte” com seus nomes e rostos, apenas para fingir sua proximidade com o povo, seus ideiais e realidades.

    Podemos chamar isso de propaganda indireta (diz-se: eu sou como você. Leva-se a pensar: gosto dele.), que é diversa da direita (diz-se: goste de mim).

    Belo texto.
    Parabéns.

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