The Decemberists e Tsuru no Ongaeshi: folclore japonês na música ocidental

A influência da cultura japonesa cresceu muito nas últimas décadas, principalmente nos países do ocidente. Em uma de minhas andanças pela internet descobri a banda The Decemberists que por coincidência possui um álbum de 2006 que traz muita referência a um antigo conto japonês chamado Tsuru no Ongaeshi.

A partir dessa constatação, que eles realmente tiveram o conto como agente criativo para as músicas do álbum, decidi fazer um estudo analisando o álbum e o conto. Para isso, falarei do estilo musical a qual pertencem e a proposta da banda com esse álbum. O conto será apresentado, assim como as questões que o envolvem e então abordarei a relação entre ambos: a banda e o conto, apontando as partes em que essa influência fica mais evidente.

The Decemberists

The Decemberists é uma banda considerada indie pop de Portland, Oregon (Estados Unidos). O nome da banda é uma referência tanto a “Decembrist Revolt”, protesto russo datado em Dezembro de 1825 onde os participantes eram chamados de “Decembrists” (Декабристы), como a atmosfera associada ao mês de Dezembro, ao fim de ano. Além dos convencionais instrumentos como a guitarra, contrabaixo e bateria, utilizam também violino, viola, órgão, acordeão, escaleta, piano, teclado e xilofone, tendo uma forte influência no folk.

Constantemente empregam em suas letras eventos históricos e temas do mundo inteiro, por exemplo, na música “When The War Came” é usada uma pequena história do Cerco a Leningrado para descrever o heroísmo dos cidadãos cientistas durante a guerra.

Formam a banda Colin Meloy (compositor, vocalista e guitarrista), Chris Funk (multi-instrumentalista), Jenny Conlee (voz, órgãos, acordeão, escaleta, piano, teclados), Nate Query (baixo) e John Moen (bateria e escaleta). Até a data presente, foram lançados sete CD’s – “Castaways and Cutouts” (2002), “Her Majesty the Decemberists” (2003), “Picaresque” (2005), “The Crane Wife” (2006), “The Hazards of Love” (2009), “The King Is Dead” (2011) e o recente “We All Raise Our Voices To The Air” (2012).

“The Crane Wife” é o primeiro álbum da banda lançado por uma gravadora maior, a Capitol Records e o nome dado ao álbum e algumas músicas são inspirados em uma lenda do folclore japonês, o Tsuru no Ongaeshi. Meloy conheceu a história há muitos anos, na seção infantil de uma livraria em Portland, desde então a história ficou em sua cabeça por achar que seria incrível colocá-la na forma de música. Então, a partir do conto, Meloy compôs canções que saltam do folclore japonês até um cenário musical contemporâneo. Apesar de aparentar ser um álbum que trata dos temas exatamente como eles são, seria, na realidade, mais como uma “re-imaginação” desses temas.

Tsuru no Ongaeshi

A história de “Tsuru No Ongaeshi” faz parte de um gênero da literatura japonesa denominada mukashi banashi onde a narrativa se aproxima das fábulas e mitos. O termo mukashi banashi significa “narrativa antiga” e essa denominação é justamente por se tratar de histórias que surgiram há muitos anos atrás, alguns estudiosos acreditam até que são historias tão remotas quanto à espécie humana e devido a isso suas origens acabaram se perdendo, o que acabou por fazê-las estabelecerem uma relação tão grande com os mitos japoneses.

Com o passar dos tempos esse contos, que inicialmente eram voltados aos adultos, começaram a ser copilados em coletâneas e durante isso acabaram por ficarem os aspectos didáticos das histórias que começaram a se tornar parte da literatura infantil do Japão, aspecto que mantém até os dias de hoje.

Os mukashi banashi podem ser dividido em três categorias, os dôbutsu mukashi banashi que são protagonizados por animais, os honkaku mukashi banashi que tem heróis humanos e os waraibanashi que são voltados à comédia.

“Tsuru No Ongaeshi” é um dôbutsu mukashi banashi que conta a história de um pobre jovem chamado Osamu que morava sozinho nas montanhas e, no caminho de casa, avistou um Tsuru (ave da família dos grous/cegonhas) preso em uma armadilha; penalizado, soltou o animal. Passado algum tempo após retornar a sua casa, ouviu alguém bater à porta. Era uma bela moça que, dizendo estar perdida, pedia abrigo por uma noite. Os dois acabaram por apaixonar-se um pelo outro e casaram. Por necessitarem de dinheiro, certa vez a moça disse ao marido que passaria três dias fiando no quarto, e pediu-lhe que não a olhasse de maneira alguma. Durante os três dias, o rapaz ouvia apenas o barulho da roca. Finalmente, ela saiu do aposento, e entregou-lhe um belíssimo manto, que deveria ser vendido.

O marido conseguiu um bom dinheiro, e retornou a casa. Passado algum tempo, a esposa disse novamente que ficaria três dias trancada no quarto tecendo, e aconselhou a ele que, da mesma maneira, não a observasse. Decorrido tal tempo, ela de lá saiu, com um manto ainda mais belo, que rendeu um valor em dinheiro muito alto. Mais uma vez, ela disse que fiaria outro manto; no entanto, desta vez, não conseguindo conter sua curiosidade, o marido espiou o interior do aposento por uma fresta, e qual não foi sua surpresa quando viu que um Tsuru fiava o manto, arrancando as próprias penas de seu peito! O Tsuru, que era a esposa, percebendo que a promessa fora quebrada, voou, deixando o lar e o marido, nunca mais retornando.

Um detalhe interessante sobre esse conto é que em algumas versões o jovem rapaz é substituído por um casal de velhos que adotam a jovem como sua filha. Essa mudança é devido a essas histórias terem se tornando para crianças e com isso os pais omitiam aos filhos o motivo do casamento por não quererem ter que falar aos filhos sobre a relação entre um homem e uma mulher.

Uma das características mais marcantes nesse conto é o elemento da proibição, apesar de ser um tema recorrente em várias histórias ao redor do mundo ele ganha aspectos bem japoneses no momento em que a mulher sendo a pessoa que impôs a regra é a pessoa que acaba se punindo mais quando alguém a quebra.

Entre as histórias ocidentais, embora a personagem que quebra o tabu seja punida, vislumbra-se a possibilidade de que tenha um final feliz. Assim, ao se considerar tais aspectos, pode-se dizer que a história japonesa pertence ao tipo da “não punição”. Entretanto, o fato de a felicidade, que o herói deveria ter obtido, vir a desaparecer sem vestígios, poderia ser interpretado como uma espécie de pena (NAMEKATA, 1999).

No caso do conto ao ser descoberta pelo marido ela foge para nunca mais voltar, passando uma sensação de ressentimento por parte dela, quando na verdade quem deveria ficar mal mesmo é o marido que descumpriu uma ordem. Sendo essa uma forte característica da cultura japonesa onde a mulher ainda é muito submissa em relação ao homem, tornando esse conto muito contemporâneo em alguns aspectos.

Relação da banda com o conto

“The Crane Wife 3”

And under the boughs unbowed
All clothed in a snowy shroud
She had no heart so hardened
All under the boughs unbowed

Each feather it fell from skin
‘Till thread bare while she grew thin
How were my eyes so blinded?
Each feather it fell from skin
(…)
A gray sky, a bitter sting
A rain cloud, a crane on wing
All out beyond horizon
A grey sky, a bitter sting
(…)

Em duas músicas do álbum “The Crane Wife” o conto se torna mais evidente: “The Crane Wife 3” e “The Crane Wife 1 & 2”. Na primeira música, “The Crane Wife 3”, Meloy fala da melancolia: no primeiro verso, a descrição indica um cenário de alguém que está morto, sob ramos, vestida por um manto (shroud é um manto usado para envolver o corpo em enterros), como o compositor afirma anteriormente, algumas partes são “re-imaginações” dos temas, o que indica que ele poderia ter uma visão subjetiva de que a esposa morreria ao partir.

Capa do album

Somente no segundo verso fica mais explícita a referência ao conto quando fala de cada pena que caiu da pele, as linhas (referindo-se aos mantos tecidos) que mostravam como ela (Tsuru) ia ficando cada vez mais magra (relação com as penas escassas), então ele se pergunta como pôde deixar de perceber isso (o marido está em primeira pessoa). No terceiro verso ele fala da sensação de falta, melancolia. Céu cinza, nuvem de chuva e a última referência: a asa do Tsuru, tudo isso além do horizonte, fora de alcance, referência ao vôo que finaliza a história.

“The Crane Wife 1 & 2”

It was a cold night
And the snow lay low
I pulled my coat tight
Against the falling down
And the sun was all
And the sun was all down
(…)

I am a poor man
I haven’t wealth nor fame
I have my two hands
And a house to my name
And the winter’s so
And the winter’s so long
(…)

And all the stars were crashing ‘round
As I laid eyes on what I’d found

It was a white crane
It was a helpless thing
Upon a red stain
With an arrow its wing
And it called and cried
And it called and cried so
(…)

And all the stars were crashing ‘round
As I laid eyes on what I’d found
My crane wife, my crane wife

Now I helped her
And I dressed her wounds
And how I held her
Beneath the rising moon
And she stood to fly
And she stood to fly away
(…)

My crane wife arrived at my door in the moonlight
All star bright and tongue-tied I took her in
We were married and bells rang sweet for our wedding
And our bedding was ready when we fell in

The sound of the keening bell
To see its pain erect
Soft as fontenelle
The feathers and the thread
And all I ever meant to do was to keep you
My crane wife

We were poorly, our fortunes fading hourly
And how she loved me, she could bring it back
But I was greedy, I was vain and I forced her to weaving
On a cold loom, in a closed room down the hall

There’s a bend in the wind and it rakes at my heart
There is blood in the thread and it rakes at my heart
It rakes at my heart

Na segunda música, “The Crane Wife 1 and 2”, as referências ao conto são mais diretas. Na segunda parte, fala de sua própria condição (marido novamente em primeira pessoa), assim como fica claro no conto Osamu era um jovem pobre e simples, sem abundâncias, riquezas nem fama. Na terceira parte ele fala do que seus olhos encontram, descobrem: um Tsuru branco, indefeso, em cima de uma mancha vermelha (mostrando o ato de arrancar as próprias penas, ferindo-se), pondo-se a chorar ao ser descoberta Tsuru.

Na quarta parte ele tenta ajudá-la, mas ela voou e partiu assim mesmo. A quinta parte dá início a uma lembrança, um sentimento de arrependimento, mostra como ela chegou até ele, como se casaram e como tudo o que ele desejava era ter conseguido ficar com ela, pois apesar de serem pobres, a esposa o amava, mas por ele ser ganancioso, a forçou a tecer (mesmo sem saber anteriormente que as penas eram dela, ele se arrepende).

Podemos perceber que ambas as músicas tem fortes referências ao Tsuru no Ongaeshi, principalmente “The Crane Wife 1 and 2”, onde todas as fases do conto são transpostas, ficando claro o grau de influência da cultura japonesa nas composições desse álbum da banda.

Assim como a banda The Decemberists muitas outras pessoas acabam por sofrer influência da cultura japonesa e isso de alguma maneira se reflete em seu trabalho e também em sua vida, as influencias do Japão estão em todo o mundo e isso que o torna tão fascinante. Ele ao mesmo tempo em que é tão distante de nós e tão próximo, só basta repararmos melhor.

REFERÊNCIAS

NAMEKATA, Márcia Hitomi. As personagens femininas dos mukashi banashi (contos antigos) da literatura japonesa: aspectos particulares e universais. Assis. 1999. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/hitomi.rtf>. Acesso em: 15 ago. 2021.

Sobre Wagner

Wagner é o manda chuva do Troca Equivalente. Formando em algo sem relação alguma com o universo dos animes e mangás, está sempre por aqui dando seus pitacos. Pelo nome do blog já dá para imaginar qual é o seu mangá/anime favorito.

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