Roteiro e Escrita – Introdução: Botchan no Jidai

Então, você quer se tornar um escritor? Mas que tal, em primeiro lugar, entender o que é ser um escritor? Bem-vindo à primeira aula e à apresentação de Botchan.

“Escrever não tem segredo. Tudo o que você precisa fazer é se sentar em frente de sua máquina de escrever e sangrar”

Ernest Hemingway

Dizem que o ato de contar histórias, a literatura oral, foi a Primeira Arte, provavelmente anterior ao próprio homo sapiens.

Nós, como humanos, temos como característica o desejo de entender e influenciar o ambiente à nossa volta, procurando padrões para explicar e manipular os fenômenos naturais, criando uma série de ferramentas e habilidades avançadas que deram origem à nossa cultura. E para o conhecimento dos antigos não ser perdido, eles o passavam adiante, para as próximas gerações, através, primeiramente, da Literatura oral, depois da Pintura, da Escrita e de todas as outras formas de artes que viriam a surgir.

O ato de contar histórias está presente em todas as formas de arte conhecida. O ser humano é um animal faminto por compreensão, entendimento e sentido. Poucas coisas são mais nocivas à sanidade de qualquer pessoa do que a falta de compreensão do mundo. E é por isto que, nos primeiros anos das civilizações, os humanos escreveram muitos livros que tentavam criar um “sentido” para as coisas.

Pode-se dizer que a religião foi o primeiro tipo de literatura a ser criada. Baseados no pouco entendimento da natureza que tinham, os humanos utilizavam figuras da sua convivência para explicar as coisas. Se um relâmpago caia do céu, era porque alguma divindade estava furiosa. Se a recém-inventada lavoura não florescia, era porque alguma entidade cósmica estava doente ou insatisfeita. Até mesmo a passagem de cometas aleatórios pelo céu eram consideradas mensagens pessoais direcionadas aos mortais, que geralmente inventavam pestes e desgraças para interpretar seu sentido. Pode-se dizer que a humanidade era bastante autocentrada naquela época – e quem pode culpá-los?

001Muitos destes relatos antigos não possuem um autor, no começo as pessoas não se incomodavam muito em assinar seus escritos. O mais antigo texto com autoria da literatura mundial pertence à princesa Enheduana, do extinto Império Acádio (que existiu à cerca de dois mil e quinhentos anos Antes de Cristo). Como a maioria das pessoas letradas da época, ela era uma sacerdotisa – os religiosos acreditavam que sua inspiração vinha dos deuses e que eram a palavra deles que transbordavam de suas mãos e bocas.

Os hinos que Enheduana escreveu são considerados o primeiro esforço registrado na história para compor uma teologia sistemática. Pode-se dizer que esta mulher praticamente inventou a Religião como a conhecemos hoje. E também, ao assinar um texto, criou a imortalidade – a capacidade de passarmos nossos pensamentos e sentimentos adiante através da arte e sermos creditados por isto.

Não é de se estranhar que tantas pessoas desejem criar arte no mundo. Desejam também, de forma inconsciente, fazer parte deste hall da imortalidade.

Se você deseja isto também, bem-vindos! Este é nosso primeiro post sobre escrita e roteiros no seu blog Gyabbo!

Aula 1: Descobrindo o Que Você Quer Escrever

003Em 1906, o escritor japonês Natsume Soseki escreveu um dos romances mais populares do Japão: Botchan, conhecido também como “Jovem Mestre”, um romance ambientado em uma escola em Matsuyama. A história é baseada na experiência pessoal do autor como professor na ilha de Shikoku. Este livro se tornou uma cartilha de como um japonês deveria se portar no período pré-guerra, sendo, em sua quase totalidade, uma espécie de livro de boas maneiras.

Hoje em dia qualquer pessoa que queira escrever um livro sobre “como uma pessoa deve se portar” seria, imediatamente, classificado como autor de livro de autoajuda (na melhor das hipóteses). Apesar da escrita seguir ritmo de autobiografia, é claro o tom de moralidade que o autor tenta passar para o leitor – embora haja discussões posteriores de que tudo não passava de um sarcasmo sutil de Soseki.

Na época em que foi escrito Botchan, o Japão estava no meio de uma ocidentalização rápida, onde os valores tradicionais japoneses e esse modo de vida estavam desaparecendo, especialmente nas grandes cidades como Tóquio. Soseki tinha passado três anos em Londres como um estudante de literatura inglesa e, trazendo um pouco deste “tempero” ocidental, voltou para seu país para filosofar sobre como um homem deveria realmente se portar.

002Em 1987, o mangaka Jiro Taniguchi lançou Bocchan no Jidai, ou “No Tempo de Botchan”, onde ele narra não apenas situações descritas no livro, mas também relata como era a vida no Japão da Era Meiji. Ele dá grande destaque ao personagem Botchan… não o do livro, mas o “verdadeiro”; o autor Natsume Soseki; e mostra até mesmo as motivações do autor quando ele decidiu escrever sua obra.

Bocchan no Jidai é um daqueles mangas que jamais veremos aportar aqui no Brasil, aliás, ele é bem raro até em outros países ocidentais. Sua publicação mais bem-sucedida foi a edição (muito caprichada, por sinal) lançada para a França, o verdadeiro paraíso dos quadrinhos no mundo. É uma pena, pois certas concepções mostradas no manga sobre o trabalho literário são bem interessantes. Sobretudo à questão central desta primeira aula: o que você quer escrever e por quê?

A primeira tarefa do futuro pretenso escritor é: descobrir o que ele gosta de escrever.

Claro que se você for trabalhar com roteiro e escrita para um patrão ou empresa, nem sempre você vai poder escrever só o que você quer. Eu sou escritora e trabalho com roteiros para Vídeos Institucionais, E-Learning e Propaganda. É algo que eu faço bem, que eu aprendi a fazer. Mas meu coração está na Literatura de Ficção, seja ela sob a forma de livros, quadrinhos ou vídeo. Sendo este um campo muito vasto, é bom você, só para começar, afunilar o seu interesse.

Primeiro: Para que mídia você quer escrever?

004Quadrinhos? Mas em que tipo de narrativa de quadrinhos você quer investir? Manga? Comics? BD? Algo diferente ou alternativo? Lembre-se de que quadrinhos é a união de palavra e imagem, é impossível escrever uma boa história em quadrinhos sem ter um mínimo conhecimento pictórico.

Talvez, pensando na falta de tempo que as pessoas têm hoje em dia, você deseje lançar um audio-book? Claro que aí vão entrar diversas variáveis, como formas do narrado falar o texto para passar a emoção. Ou quem sabe você deseje escrever o roteiro de um filme… aí entram outras variáveis, como o uso da imagem, das sequências cinematográficas… etc.

No nosso pequeno curso aqui no Gyabbo! vamos utilizar como mídia a boa e velha literatura tradicional. Sabe como é, livros não interativos, seguindo um sequenciamento simples de leitura da primeira página à última.

“Ué? Mas dá para ler um livro que NÃO seja na sequência da primeira página à última? E que história é esta de interativo?”

Claro que sim! Um exemplo de livro interativo e sem sequenciamento linear podem ser as Aventuras-Solos (ou “Livro-jogo”), uma história que permite que o leitor participe dos acontecimentos, decidindo qual caminho o personagem que ele controla vai tomar. Uma série de aventuras escritas por Steve Jackson e Ian Livingstone nos anos oitenta chegou a ficar muito famosa no Brasil sob o nome de Aventuras Fantásticas (Fighting Fantasy).

Existem, é claro, também outras formas de se escrever livros não lineares. Em O Jogo da Amarelinha, romance de Julio Cortázar, o leitor “pula” do jeito que quiser as histórias apresentadas. Como um labirinto que avança e retrocede brincando com quem lê, a obra pode ser lida tanto de forma fluida, clássica, como também a partir do capítulo 73, seguindo a ordem indicada pelo autor. Pode-se seguir um mapa de leitura, com mil encadeamentos possíveis, incluindo capítulos antes ironicamente denominados “dispensáveis”.

Sem falar, é claro, dos livros que usam como mídia a interatividade da internet e da computação em geral – os próprios jogos de video game seriam um exemplo disto. Muitos escritores que lançam E-Books podem fazê-lo da forma tradicional ou também pensar em formas diferentes de interagir com o leitor: livros onde as letras e as figuras se mexem sozinhas

Mas… repetindo, à fim de tornar este mini-curso o mais simples possível vamos, primeiramente, tratar da boa e velha literatura tradicional (se vocês gostarem, posso falar mais a respeito de literatura não convencional em outros posts).

Segundo: Qual tema você deseja escrever?

005Antes de mais nada, não leve esta pergunta tão a sério. Ela está aqui somente à guiza de compreensão didática. A maioria dos escritores que eu conheço não simplesmente “decidem o que querem escrever” de forma dura e insensível. Eles geralmente têm uma ideia (engatilhada por uma conversa, um sentimento, uma imagem que viu na rua, um “insight” que vem do nada…) e, a partir daí, começam a escrever um rascunho mental (ou num pedaço de papel à mão) e DEPOIS é que decidem qual será o tema da sua história.

Claro que se você trabalha com escrita é bem provável que alguém lhe diga o que escrever. O departamento de marketing de uma empresa quer que você escreva o roteiro de um comercial cuja função é vender mais do produto deles… então você vai utilizar uma série de ferramentas para chegar a este objetivo.

Quando você decide qual o tema que deseja escrever, invariavelmente você também tem como objetivo (tendo ciência disto ou não) provocar algum tipo de sentimento na pessoa que vai ler seu trabalho. Se quer escrever uma história de terror, então seu objetivo é que o leitor sinta medo. Se quer escrever uma comédia, seu objetivo é que o leitor dê gargalhadas. Se quer escrever um romance (no sentido “romântico” mesmo), então seu objetivo é fazer com que o leitor se identifique com os personagens e torça por eles e seus anseios românticos. Se quer escrever uma história de mistério, seu objetivo é fazer com que o leitor fique intrigado e atento a cada linha que você escrever e, ainda assim, não consiga descobrir o final, recebendo um plot twist no estômago.

Fique ciente disto: quando um autor decide seu tema ele, invariavelmente, está colocando um pouco do seu próprio desejo na sua obra.

Então, o terceiro passo antes de começar a escrever é…

Terceiro: O que você deseja escrevendo?

006A arte, de uma maneira geral, é uma atividade solitária. Mesmo quando você está num estúdio de arte, rodeado de colegas lhe dando dicas e sugestões, qualquer tipo de arte é um exercício de olhar para dentro.

Isto pode ser trágico porque a arte é uma profissão que só se sustenta (financeiramente falando) com a validação das outras pessoas. Claro que existem os artistas enclausurados em seus guetos, que “produzem arte só para si”, mas a maioria deseja mostrar para o mundo suas obras. Quando exibimos nossos textos, roteiros e pensamentos, estamos exibindo não um objeto artístico, mas nós mesmos para as outras pessoas.

Talvez esta seja a razão pelo qual a arte possui os profissionais mais melindrosos do mundo.

Distanciar-se da sua obra é difícil, mas é um exercício que todos os que desejam trabalhar com arte um dia devem fazer. É mais fácil quando você é “mandado” a fazer uma obra de arte (trabalha num estúdio, numa agência ou coisa assim), desta forma fica um pouco mais fácil se distanciar. Mas quando temos a intenção de escrever nossa Obra-Prima, nossa Magnum Opus

Por isto, antes de encerrar esta introdução, aconselho a todos os pretensos escritores a se prepararem para a crítica (inclusive a destrutiva) e, principalmente, para a pior delas: a indiferença.

E também aconselho que vocês façam uma boa leitura interna do que realmente gostam de escrever para que suas futuras obras não sejam simples “plágios” de outras obras artísticas dos quais vocês são fãs (a não ser que a intenção de vocês seja realmente escrever fanfictions, mas aí é outra história). Quanto mais olhamos para dentro, mais únicas e originais serão as nossas obras.

Ficamos por aqui. Até a próxima!

Então, você quer se tornar um escritor? Mas que tal, […]

7 thoughts on “Roteiro e Escrita – Introdução: Botchan no Jidai”

  1. Achei esse curso incrivelmente prático e as simples sugestões dele, me inspiraram a repensar o meu exercício da escrita em todas as suas nuances.
    Acompanharei as demais aulas. :)

    1. Valeu, esta introdução foi realmente uma aula bem “teórica” com dicas de lição de casa! As sugestões mais práticas virão na próxima semana!

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