O Gender-Bender nos mangas

Conheça o gênero de manga que desafia os gêneros; o gender-bender!

“Rebel rebel, put on your dress!”

David Bowie – Rebel, Rebel

Visualize esta situação: você (seja homem ou mulher) está feliz e contente, pronto(a) para ir ao clube dar uns mergulhos na piscina. Você nada, mergulha, boia e então quando sai da piscina, percebe que… trocou de sexo!

Assustado(a), você corre para as duchas, acreditando que tinha alguma coisa errada na água e que você precisa se limpar. Ao cair da água quente no seu corpo, você volta a ter o seus órgãos reprodutores rotineiros. Ufa! Para quem curte mangá e animes, esta situação é muito parecida com Ranma ½, correto? Mas o que muitos não sabem é que o sub-gênero gender-bender (troca de gêneros) é mais comum nas obras japonesas do que se imagina.

Ranma

O ano era 1953 e Osamu Tezuka era o deus do mangá, qualquer obra sua já vendia aos borbotões. Então ele decide começar uma nova obra, um mini-épico medieval cuja personagem principal é uma princesa que se veste de príncipe! Tratava-se de Ribon no Kishi, mais conhecido no Brasil como A Princesa e o Cavaleiro, título que foi publicado pela editora JBC e posteriormente pela NewPOP.

A história, claro, tem um plot mais profundo do que simplesmente a saga de uma menina que quer ser menino. De qualquer forma esta história é considerada a primeira do “estilo” shoujo nos mangas. Tornou-se um grande sucesso, com direito a animes, OVAs e radionovelas. Sem falar que chamou muito a atenção para o fato de que, sim, meninas também podiam brincar de capa e espada.

Ribon no Kishi 04

Talvez Tezuka não tivesse a menor intenção de revolucionar ou ser polêmico, no entanto, o mundo assistiu, nos anos 50, a fortificação do movimento feminista – embora esta época seja icônica com a visão daquela famosa dona-de-casa feliz do subúrbio.  Certas “coincidências” começaram a acontecer no mundo do entretenimento: as mocinhas indefesas começaram a ter mais falas e já não se limitavam a serem o prêmio do herói.

Um dos grandes destaques da década, nos Estados Unidos, ficou para o seriado I Love Lucy (1951-1957), que mostrava uma protagonista forte, carismática e, por vezes, moderninha. A atriz principal, Lucille Ball, foi a primeira mulher a se vestir de homem na televisão – sem falar que ela obrigou os produtores a aceitarem seu marido de verdade, o cubano Desi Arnaz, para o papel de esposo na série (os produtores temiam que a conservadora audiência americana não gostasse de um casal “inter-racial”).

lucy lucy

Já a década de 70 surfou na revolução cultural dos anos anteriores e viu surgir uma revolução sexual sem precedentes, batendo de frente com os antiquados valores do mundo ocidental. Se as mulheres, enfim, estavam ganhando mais respeito e garantindo direitos em torno de questões de gênero, agora era a vez dos gays e lésbicas abrirem caminho e discutirem os preconceitos e discriminações quanto à orientação sexual. Assim, durante algum tempo estava na moda mulheres usarem ternos e homens pintarem os olhos, uma forma simples de marcar uma posição política com pequenos atos.

Bandas como o New York Dolls se vestiam de mulher, embora nenhum dos integrantes fosse gay. O famoso diretor de teatro John Vaccaro fazia questão de que mulheres fizessem papéis de homens e homens de mulheres. O músico David Bowie cantava que ser rebelde era “colocar um vestido”. Entre centenas de outros exemplos, por toda a parte as pessoas começavam a se rebelar contra as limitações de gênero impostas pela sociedade tradicional.

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Esta onda, é claro, também chegou ao Japão. Em 1972 tivemos o inesquecível Rosa de Versalhes, de Riyoko Ikeda. Outra personagem feminina forte que, por conta do destino, teve que assumir o papel de um homem. De fato começou a se tornar comum as obras com personagens femininas assumindo papéis masculinos – às vezes, não necessitando trocar de roupas.

Porém, estas obras não são consideradas por algumas correntes como gender-bender. As roupas mudavam, mas o sexo e identidade de gênero do personagem continuava o mesmo. Então, quando o estilo realmente surgiu? Atualmente, um manga de comédia publicado em 1976 é considerado como sendo o percursor: Boku No Shotaiken, de Yuzuki Hikaru.

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O manga contava a história de Eitaro, uma rapaz que ama uma garota e não é correspondido. Após cometer suicídio, um cientista rouba seu cérebro e o transfere para o corpo de uma mulher. E, mesmo com seu sexo trocado, ele tenta reconquistar a garota que ele ama. A obra durou apenas três volumes, não fazendo muito sucesso e nem tanto estardalhaço, mas a semente estava plantada.

Desde então outras obras surgiram. O destaque especial fica para Ranma ½, da mestra Rumiko Takahashi. Monkey Punch, o criador do personagem Lupin III, um dos mais “machões” dos animes, também resolveu brincar com a temática com sua obra Cinderella Boy. Recentemente, o manga indie Mahou Shoujo Ore, de Chokusen Moudama, ganhou tanto destaque que recebeu até publicidade em metrôs e uma promessa de um anime. Mesmo obras que não são necessariamente orientadas neste estilo, como Sailor Moon, possuem sua pequena dose de gender-bender com a(o)s Sailors Stars.

mahou-shoujo-ore-manga

Atualmente, mangas com temática gender-bender não são mais nada incomuns e é bem interessante como no Japão este tipo de coisa não é visto como algo escandaloso, nem mesmo décadas atrás. Se no Brasil ainda estamos chocados com um beijo gay numa novela, o velho Yamato não tem nem um décimo dos problemas que nós temos com a sexualidade alheia. Mas por que isto?

A razão estaria, mais uma vez, na história. Apesar do Japão ter esculpido um modelo de “machões” nos anos 50 e 60, com seus filmes de salaryman que bolinam as secretárias e samurais barbudos e comedores, encabeçados por galãs de olhos amendoados como Toshiro Mifune, historicamente o país nunca teve problema com o padrão andrógino.

Toshiro Mifune

Teria sido comum no período de domínio do clã Tokugawa (1603 – 1868), o costume de garotos serem criados como meninas, vestindo quimonos e usando cortes de cabelo femininos. Havia também os onnagata, homens que faziam papéis femininos no teatro Kabuki e levavam isto como um “estilo de vida”. Havia o shunga (pornografia da era Edo) onde era difícil distinguir homens de mulheres.

Há relatos bem documentados de que importantes figuras históricas como Nobunaga Oda e Tokugawa Iemitsu teriam sido homossexuais ou no mínimo bissexuais de acordo com nossa visão atual. E isto não era visto como vergonhoso ou imoral. Apesar de todo o pavor no Japão com o crescente número de “homens herbívoros”, o problema não está no fato de um homem assumir características ditas próprias das mulheres, mas sim de eles não estarem querendo se reproduzir, mesmo sendo heterossexuais.

Sailor Stars Carddass Station

O Japão, ao se ocidentalizar, teve que abraçar a tecnologia, os costumes e as neuras ocidentais, assumindo dentro dessa cultura globalizada uma série de preconceitos sobre questões de gênero e orientação sexual que não faziam parte da sua história. Mas, felizmente, conseguiu filtrar boa parte da informação e se adaptar. Vou repetir: apesar da parada gay no Japão não juntar mais do que uns vinte mil, lá o fato de você ser gay ou não tem bem menos impacto para se procurar trabalho que no Brasil – onde parece que homens gays só podem ser artistas, cabelereiros, ou atendentes de telemarketing. Lá, a vida privada é privada mesmo. Se você estiver numa fábrica apertando bem os parafusos você pode fazer o que você quiser na cama.

A temática gender-bender, por si só, muitas vezes se força a situações de comédia ou, no mínimo, fantasia – por isso, apesar de não ser incomum, é um pouco restrito. Embora não muitos cheguem aos pés de um sucesso como Ranma ½, existe um bom punhado de mangas que se calçam nesta marca. Se o enredo estiver dentro dos padrões editoriais, nenhum semanário japonês se negaria a publicar uma obra deste naipe em suas páginas.

Claro, ainda estamos à espera de um novo mega-hit do estilo, mas por enquanto o pouco que temos é bom para nos divertir!

Até a próxima!

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16 thoughts on “O Gender-Bender nos mangas”

  1. Texto muito interessante, Jussara! De fato, os japoneses não têm o mesmo tipo de preconceito que os ocidentais. Se não me engano os onnagata são considerados as estrelas do Kabuki por vencerem o desafio máximo de um ator, que é interpretar alguém do sexo oposto.

      1. Salve, eu disse que os japoneses não têm o mesmo *tipo* de preconceito. Todo mundo tem preconceitos, só que algumas sociedades têm mais preconceito de cor enquanto outras têm mais de sexo, e por aí vai.

      2. O preconceito que você fala, “salve capitão”, nada tem a ver com a temática gender-bender. Trata-se de xenofobia, um preconceito universal que, nos japoneses, foi superlativado por diversos fatores históricos.

        A começar, o fato do Japão ser uma pequena ilha, de poucas terras produtivas e muito vulnerável a ataques estrangeiros. Isto criou ojeriza do Japão a tudo que venha de fora – e o fechamento de seus portos em 1648 também contribuiu para isto.

        E falando em xenofobia, saiba que o Brasil – conhecido por ser um país que recebe bem os estrangeiros – tem perdido muitos pontos ultimamente. Parece que temos umas “boas-vindas” seletivas: quando é para receber gringos endinheirados que vem fazer turismo aqui, somo todos sorrisos. Mas quando é para receber refugiados haitianos, angolanos ou bolivianos, somos tão preconceituosos quanto americanos e japoneses. Uma pena, pois este parecia ser o único ponto em que o Brasil se salvava…

        1. Eu mesmo já disse isto aqui: Se em uma loja de roupas aqui no Brasil, for um cliente branco falando inglês, pode ter certeza que ele será muito mais bem tratado que se vier um cliente pardo falando espanhol (ou casteriano).

  2. Uma boa matéria, como sempre ^_^.

    Para quem quiser uma dica de leitura, estes dias me peguei lendo este mangá >> Boku wa Mari no Naka.

    A história é sobre um hikkikomori que largou a faculdade devido sua síndrome de pânico e sobrevivi apenas como o dinheiro que seus pais lhe dão para pagar as mensalidades e custos de vida (ele não contou para os pais que ele largou a faculdade).

    Ele sai de casa apenas para ir ao mercado e em lojas de conveniências. Numa destas idas ele acabou se apaixonando por uma colegial que ele viu em uma loja de conveniência e então passou a segui-la de longe, mas nunca teve coragem de falar com ela.

    Eis que um dia, enquanto ele a seguia, ela para no meio do caminho e se vira em sua direção. Mas, neste momento sua mente se “apaga”, e quando ele acorda, ele descobre que sua mente foi “transferida” para o corpo da menina que ele admira.

    O manga tem um tom de suspense e é meio “dark” também, com a história rolando com o cara tentando descobrir o que aconteceu.

  3. Na realidade, não. O Japão até pode encara gender bender de uma maneira mais aberta, mas não encara a homossexualidade da mesma forma. Já assisti vários vídeos sobre homossexualidade no Japão, e a sociedade não aceita. Lá você é “aceito” se é artista, porque eles encaram que seja algo cômico e performático. Além disso, não sabem diferenciar a homossexualidade de outras coisas, como a transsexualidade, por exemplo. Na visão dos japoneses, homem gay quer ser mulher, e etc. Assim como encaram a orientação homossexual como uma fase passageira, e depois a pessoa volta “a ser normal”.

    Além disso, ouvi muitos relatos de homossexuais japoneses que não saem do armário porque não conseguiriam emprego ou teriam chances de serem demitidos se saíssem. A parada lá inclusive não tem muitos adeptos porque eles têm medo de se expor.

    Não tem prisão, nem crime nem nada do tipo, mas há muito preconceito silencioso.
    A ideia de yaoi e yuri (que são horrívelmente escritos, na visão de um homossexual) ajuda a reforçar tudo isso, de que a homossexualidade para eles é uma fase passageira da adolescência.

    Acho triste.

    1. Interessante esta ideia da visão deles de ‘fase passageira’ – e realmente, Yaoi e Yuri não tem nada a ver com historias de homossexuais feita spor homossexuais, como o Bara – eles mesmos reclamam muito disto.

  4. Ótimo texto!
    Mas acredito que mangá é uma coisa, realidade é outra. Como diz a cultura japonesa, “o prego que se destaca é martelado”. Embora a noção de beleza deles nada tenha a ver com sexualidade – se vê beleza em tudo – sexualidade, mesmo que seja entre quatro paredes, não é algo totalmente aberto a conversas e aceito em todas as tonalidades. Assim acredito…

  5. Adorei o texto! É curiodo como, apesar do japão ser conservador, eles não estranham essa história de crossdresser, muito pelo contrário, quando elogiam a beleza de algum personagem sempre citam características delicadas, andrógenas. É algo cultural deles.
    Mas sempre me perguntei se a homossexualidade era mais aceita lá ou se eram aceitos heteros que se vestem de mulheres…

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