Shigurui – Frenesi da Morte

Sangue e Loucura! Descubra o sentido da palavra ‘Shigurui

“Não é o internato que faz a sociedade, o internato a reflete. A corrupção que ali viceja vem de fora.”

Raul Pompéia, O Ateneu

Hoje vamos comentar uma das obras mais famosas do quadrinista japonês Takayuki Yamaguchi, conhecido por seus mangás, digamos… pouco usuais – e pode aguardar, esta não será a única vez que ele vai aparecer neste espaço onde os bizarros são normais!

Shigurui é uma obra que mostra o lado perverso, insano e escatológico dos samurais. Muitas vezes vistos como baluartes da polidez e da assepsia mental e física, hoje vamos ver o lado mais nefário destes tão falados guerreiros. O quão loucos e cruéis podem ser seus atos em nome da ambição ou mesmo da honra.

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FRENESI

Numa tradução literal, “Shigurui” significa “Frenesi da Morte” (Death Frenzy em inglês, como é conhecido no ocidente). A palavra é oriunda de uma citação do general japonês Nabeshima Naoshige, comentada no livro Hagakure, a bíblia dos samurais, que diz: “O caminho do samurai está no desespero.”, onde a palavra desespero pode ser traduzida como “loucura” ou “frenesi”. Em outras palavras, um samurai, para ser plenamente eficiente, deve enlouquecer num frenesi de morte.

Ué? Mas por quê?

Vamos, antes de mais nada, explicar: os Samurais eram os guerreiros de elite do Japão Feudal e também uma casta social. Para defender o seu Daimyo (senhor feudal), eles, literalmente, colocavam sua vida no fio da lâmina. Não hesitavam de maneira alguma em ir para uma batalha mortal, servir de guarda-costas ou duelar para defender a honra do seu empregador. Seguiam códigos éticos bastante severos e qualquer mácula em sua reputação terminava em Seppuko (ou harakiri), o suicídio ritualístico. Em outras palavras, embora representassem a nata da sociedade japonesa na época, as vidas dos samurais valiam o tanto que o seu senhor determinava.

Por este motivo estes guerreiros deviam, pouco a pouco, desapegar-se da própria vida (que, de certo modo, não lhes pertencia). Eram apenas máquinas feitas para retalhar inimigos – mesmo que estes “inimigos” fossem, inclusive, amigos e parentes do próprio samurai. Diante de uma sina existencial tão terrível, enlouquecer realmente parecia um caminho válido para um samurai: pois quanto mais enlouquecido, mais facilmente ele poderia matar ou morrer pelo seu senhor.

A história de Shigurui gira em torno desta lealdade extrema dos samurais. Baseada no primeiro capítulo da obra do escritor Norio Nanjô, o “Torneiro no Castelo Suruga” (Suruga-jô Gozenjiai), a narrativa começa relatando a morte de Tokugawa Tadanaga, o irmão mais novo do Shogun – autoridade máxima do Japão Feudal – que foi obrigado a cometer Seppuku devido aos rumores de sua má conduta.

Esta má conduta estaria associada a diversas atrocidades que o lorde fez, entre elas o Torneio do Castelo Suruga, onde ele obrigou diversos espadachins a lutarem batalhas mortais apenas para sua diversão. Nada que fosse tão descabido na época, se não fosse um detalhe: ele exigiu que os combates fossem feitos com espadas reais ao invés de espadas de madeira (que eram usadas, obviamente, para preservar ao máximo a vida dos lutadores), pois seu desejo era de ver o sangue escorrer pela arena. Algo tão absurdo quanto decretar que as lutas de Esgrima, Boxe ou Vale-Tudo dos dias se hoje fossem até a morte.

Praticamente condenados, os melhores espadachins do país se reuniram à mando do seu senhor. A maioria não sobreviverá, mesmo os vencedores, pois muitos não resistirão aos ferimentos causados pelas espadas reais – a Katana, a espada curvada japonesa, é considerava até hoje a lâmina mais letal do mundo.

Começa o torneiro e o primeiro embate reúne dois espadachins bastante inusitados: Gennosuke Fujiki, um samurai sem um braço, e Seigen Irako, um espadachin cego e manco. A princípio, todos duvidam que samurais em tão lastimável estado irão conseguir realizar uma boa luta, mas há algo diferente neles. Algo… insano! Quando a dupla de aleijados estava prestes a começar a lutar, o momento é congelado. Começa um flashback gigantesco que conta a história destes dois inimigos mortais, que já haviam se enfrentado no passado e, agora, estão diante do seu duelo final.

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BLOODY FLASHBACK

A saga inteira de Shigurui toma rumo de lembranças dos personagens – incluindo alguns flashbacks dentro de outros. O tempo volta até sete anos atrás. Conhecemos a Escola de Esgrima Kogan, um nome poderoso em sua província, liderada por um samurai louco de seis dedos na mão (!). Seus discípulos são guerreiros orgulhosos, quase tão loucos quanto seu mestre. Obedecem aos mandos e desmandos do seu senhor sem piscar, não hesitando em cometer assassinatos ou desfigurar pessoas com suas espadas apenas para provar a força da sua escola.

Um dos discípulos mais jovens, porém mais fortes, é Gennosuke (na época com seus dois braços intactos) que se mostra um espadachim extremamente severo e sério. Sem jamais ter perdido um combate, ele acaba sendo desafiado pelo, até então desconhecido, Seigen (na época, ainda com sua visão e seus pés intactos também). O samurai invasor é belo e astuto e consegue fazer o impossível: derrotar um membro da escola Kogan. Embora tenha conseguido derrubar Gennosuke, ele não consegue vencer seu segundo oponente. Porém, devido ao seu belo desempenho, é acolhido na escola Kogan como um novo aluno. Em pouco tempo Seigen e Gennosuke se tornam “amigos”, ou algo próximo disso. São colegas persistentes, sempre tentando superar um ao outro. Ambos disputam a mão da bela Mie Iwamamoto, filha de Kogan Iwamamoto, o mestre louco.

Tudo parece prosseguir bem, até que as ambições de Seigen Irako começam a ficar desmedidas, conflitando com os interesses da escola. E o preço que o espadachim terá de pagar por sua insolência é alto demais, fazendo com que ele entre numa espiral de loucura em busca de vingança.

Embora o grande pivô da história seja a rivalidade de Irako e Gennosuke, eles não são os únicos personagens abordados. Existem outras bizarrices no elenco, como dois samurais gêmeos e gays (!!) que lutam sempre juntos, uma garota samurai hermafrodita (!!!) que tem força suficiente para carregar um cavalo nas costas, um guerreiro desfigurado que tem a  forma de um sapo (!!!!), entre outros. Estes são apenas uns poucos exemplos. E para regar este imenso circo dos horrores, temos litros e litros de sangue espirrando, e quilos e quilos de tripas expostas. Alguém aí está com fome?

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GORE, GORE, GORE

Takayuki Yamaguchi é conhecido pela sua grande acurácia em desenhar anatomia humana. Principalmente a interna. O mundo dos samurais não era mesmo um lugar muito amigável. Sangue e tripas eram parte do seu cotidiano. Tanto assim que os samurais, antes de um duelo, costumavam tomar uma bebida depurativa para limpar os intestinos, no caso destes serem cortados e exibidos ao público, para não dar mau cheiro.

E é justamente esta escatologia macabra que é exibida em Shigurui, sem amenidades. A loucura psicológica também está presente na história. Sempre a mando de alguém, os personagens se vêem obrigados a cometer atos imorais em nome do seu senhor. Parece completamente descabido hoje, para nós, que um patrão nos obrigue a matar, roubar e até mesmo assistir passivamente o estupro ou assassinato de uma pessoa que amamos apenas “porque o mestre mandou”.

Mas na época dos samurais, eles precisavam engolir seus sentimentos e obedecer cegamente às ordens. Sem chiar. O “Frenesi da Morte” (ou, simplesmente, o “Desespero” citado por Nabeshima Naoshige) era, provavelmente, uma consequência do duelo interno destes samurais com sua própria consciência e os desmandos dos seus senhores. Enlouquecer de uma vez era a única opção para se manter, pelo menos um pouco, são.

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ASSISTA O ANIME, LEIA O MANGÁ

Shigurui possui duas versões: o mangá e o anime. O mangá, atualmente completo, possui 15 volumes. E o anime, atualmente incompleto (pois a versão animada cobre apenas até a metade da saga) possui 12 episódios. Ambos são inéditos no Brasil, e eu rezo para que, em breve, alguma editora acolha este título. Ambas as suas versões são verdadeiros Freaks Shows, com guerreiros loucos e bizarros e tinta vermelha espirrando para todo lado. Plus, ainda existe um grande apelo erótico na obra, com nudez e cenas de sexo: imprópria para crianças até a medula.

Se você acha que Dragon Ball é um anime ‘frouxo’ demais e que Berserker é ‘mangá de menininha’, conheça Shigurui. Pois apesar de toda a violência e sanguinolência, tanto a obra na tela quanto em papel são conduzidas com uma poética lúgubre inigualável.

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20 thoughts on “Shigurui – Frenesi da Morte”

  1. Fantástico, Jussara! Não sei se vou ter coragem de ver por que gore não é bem a minha praia, mas fiquei bem curiosa. O traço do mangaka é muito bom! Realmente, a vida dos samurais não era nada fácil. Nem consigo imaginar como deve doer cortar a própria barriga. Brr!

  2. Vou ser sincero, ao saber que vc iria escrever sobre Shigurui eu fiquei triste pois esse é o meu anime/mangá favorito e eu tinha perdido essa oportunidade (comentário “interno”), mas ao ler o seu texto essa tristeza passou…
    Já sobre Shigurui. Pra mim algo para “adultos” quer dizer que a criança não poder ver ou não vai entender, Shigurui consegue ser as duas e executá-las muito bem.
    Como o texto é seu não vou falar mais nada.
    Em suma ótima obra e ótimo texto.
    (aliás minha mãe tinha seis dedos no pé, vc tem algo contra? hahaha)

  3. Adorei a forma como você contextualizou o título antes de falar da obra realmente, deu um diferencial bem legal pra review. Parabéns! E o mangá em questão parece bastante interessante.

  4. Jussara, sua resenha ficou incrível, bem textualizada, cativante, leitura fluída, eu fiquei interessada em Shigurui, talvez eu assista o anime antes para depois embarcar no mangá. Você está de parabéns!

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