Hajime no Ippo e o uso da dissonância cognitiva

Este post possui spoilers sobre o manga Hajime no Ippo até o capítulo 35, leia por conta e risco.

Recentemente eu resolvi preencher uma lacuna entre as minhas leituras de mangas começando finalmente a ler a gigantesca obra Hajime no Ippo, série de Jouji “George” Morikawa, publicada desde 1987 na revista Weekly Shounen Magazine, já ultrapassando a marca de 900 capítulos e chegando aos 100 volumes encadernados – sendo o 12º maior manga já publicado no quesito volumes.

A história possui um motivo bem simples: Makunouchi Ippo é um tímido adolescente de 16 anos, sem amigos ou grandes pretensões na vida, ajudando diariamente a mãe no negócio pesqueiro que ela possui após a morte do marido. Vítima frequente de bullying, Ippo acaba sendo salvo de mais um ataque pelo boxeador Mamoru Takamura que o leva até a academia de boxe Kamogawa para que ele se recupere. No entanto, ao esmurrar um saco de areia para aliviar a frustração, Ippo mostra-se um talento não lapidado e assim começa seu caminho no boxe.

Mas não estou aqui para falar sobre a obra de Hajime no Ippo em si. Na verdade, da mesma forma que procurei fazer com alguns episódios de Sket Dance no post “SKET Dance e o poder do oposto” (particularmente, recomendo a leitura antes ou depois de prosseguir com este post), usarei alguns capítulos do manga para ressaltar como um bom mangaka pode utilizar os clichês em prol de uma história ainda mais empolgante para o leitor.

Um dos pontos principais ao contar uma história centrada nos personagens – e especialmente em um shounen – é fazer com que o leitor venha a gostar ou pelo menos simpatize com o protagonista. Em um manga de luta isso é ainda mais importante, pois a ideia central é que o leitor possa crescer junto do personagem e com isso a empatia com ele é quase que indispensável para que o leitor torça pelas vitórias do protagonista. Muitas vezes, e em Hajime no Ippo podemos perceber isso claramente, é exatamente essa torcida que consegue dar o tom empolgante à série. É naquele momento em que você grita mentalmente para que um desenho em preto e branco feito de nanquim “se levante” da lona fictícia, torcendo que ele consiga superar todas os contras que se apresente para triunfar, aí sim o objetivo foi cumprido.

Porém, para um mangaka decente, fazer com que o leitor torça para seu personagem não é exatamente o mais difícil. O uso do maniqueísmo é a ferramenta mais usada para trazer a torcida para o lado do protagonista. Existem exceções, mas quem torceu para o Freeza derrotar o Goku? Quem torceu para que Madoka falhasse e o Kyuubey “vencesse”? Quem ficou ao lado dos cavaleiros Guerreiros Deuses de Asgard quando eles linchavam o pobre Seiya (Ok, nesse caso acho que muita gente, até)? A verdade é que ao colocar o personagem do “bem” lutando contra o personagem do “mal” é fácil prever para quem a maioria dos leitores torcerá. E isso não é um problema, é um elemento legítimo a ser usada na construção da uma história.

Mas e se o inimigo não apresentar motivos para não merecer vencer? E se as vontades do oponente forem tão ou mais legítimas que as do protagonista? Este é o grande ponto deste post, o uso da dissonância cognitiva para aumentar as emoções sentidas pelo leitor e criar nele um estado que o retira da sua zona de conforto. Termo cunhado pelo Psicólogo Social americano Leon Festinger na década de 50, busca explicar o sentimento de desconforto causado pelo confrontamento entre ideias, crenças e opiniões pessoais frente à realidades diferentes.

Após vários meses de treinamento, Ippo se prepara para estrear no torneio do leste japonês para iniciantes, onde tem como objetivo chegar à final e enfrentar novamente seu grande rival. Perceba que aqui já estamos no quinto volume e queremos ver Ippo chega às finais, derrotando os oponentes que aparecerem para conseguir sua grande luta. Porém, no primeiro combate somos apresentados a Jason Osma, um boxeador afro-americano, carregando consigo as esperanças de dias melhores do seu pobre ginásio. Mas não é apenas a situação econômica de Osma que nos faz duvidar da própria torcida, o personagem é construído em alguns capítulos, mostrando ao leitor seu lado mais humano, retirando o rótulo de apenas mais um lutador. Osma é carismático, é honrado, possui motivos fortes para vencer, possui as habilidades para vencer!

Nesse momento, o leitor é levado a uma confusão quadro a quadro sem saber exatamente o que fazer; é claro que Ippo não pode perder, ele precisa continuar até chegar às finais e quem sabe ser campeão, “droga, eu estive torcendo para ele esse tempo todo, ele não pode perder!“. Mas o envolvimento pessoal que o autor consegue colocar antes, durante e depois da luta impedem o leitor de seguir friamente com esse pensamento, Osma merece vencer, “um cara como ele não pode cair logo na primeira luta!“.

Apesar do clichê de usar um torneio para galgar degrau por degrau o crescimento do protagonista, ao usar a dissonância cognitiva o autor consegue nos tirar da zona de conforto e nos colocar em um dilema moral, fazendo com que nos envolvemos muito mais com a história e queiramos saber o que acontece em seguida. Se objetivamente falando é claro que o protagonista irá vencer sua primeira luta, essa artimanha faz com que mesmo na frente do óbvio, fiquemos na dúvida, enriquecendo muito a experiência.

Certamente Hajime no Ippo não é o único manga usar desse artifício, mas certamente foi um dos que melhor usou durante esses meus anos de leituras de mangas, principalmente por não apoiar sua obra apenas nisso. A obra vem se mostrando uma leitura muito interessante e mesmo que seu tamanho possa assustar muita gente (eu, inclusive), são por motivos como esses que eu recomendo a leitura para todos. Mais do que mais um manga de esportes ou um shounen infinito, vem se mostrando uma obra de real qualidade.

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8 thoughts on “Hajime no Ippo e o uso da dissonância cognitiva”

  1. Conheci o anime em 2005. Desde então acompanho a obra. É um mangá sensacional. E como você falou, dificilmente você verá Um vilão na história. Todos tem suas motivações para continuar lutando. Sendo que, em alguns casos, você até fica triste quando o adversário perde a luta.

    Será que há alguma chance desse grande sucesso japonês ser publicado no Brasil?
    E em inglês, há quantos volumes disponíveis à venda?

    1. cara, acho que é impossível Hajime ser publicado no Brasil ou no USA. Já são mais de 100 volumes, é arriscado demais, vai que ele não faz sucesso com o público não-otaku. E pensa bem, mesmo que seja mensal, vai demorar mais de 10 anos pra chegar no volume que tá hoje. É MUITO tempo, e pode ser que daqui a 10 anos nem haja tanto otakus aqui( espero que isso não ocorra, e sim que a quantidade de otakus aumente, masss).

  2. Realmente, Hajime usa muito isso, vc quase nunca odeia um personagem em específico. Acho que o único que quase todo mundo que leu/assistiu Hajime não gostou foi o Hawk, pq realmente, o cara é muito fdp. E ainda sonho com mais uma nova temporada de Hajime, pegando até a segunda luta do Takamura pelo titulo mundial

  3. Esse lance do adversário ser honrado e ter motivos nobres me lembra o Nam ,de Dragon Ball, adversário que Goku enfrentou na primeira vez que participou do Torneio de artes marciais, ele tava no torneio pra conseguir dinheiro para poder ajudar a sua vila que sofria na seca.
    Apesar da gente torcer para o Goku ganhar, todos também torciam pelo Nam porque ele tinha um objetivo nobre. O bom é que ele apesar de perder acabou sendo ajudado pelo Mestre Kame.

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