O Castelo animado: livro e filme explicados

Esse texto tem muito spoiler, principalmente do livro.

Em meio às muitas promoções da Amazon, me vi comprando o box da cronologia “O Castelo Animado” da escritora Diana Wynne Jones. Na verdade, eu comprei sem pensar e sem saber que se tratava de três livros – por alguma razão, na minha cabeça, eram mangás/quadrinhos sobre livro de O Castelo Animado (não comprem por impulso, crianças!).

Quando o box da Editora Galera Record chegou, LINDÍSSIMO, e eu vi que eram livros, eu me chateei. Sou TDAH e sempre tive dificuldade com livros e acabei deixando o box de lado, sabendo que muito provavelmente eu jamais o leria – pelo menos ele ficava lindo na estante.

Os outros dois livros são parte da trilogia, mas não necessariamente são uma sequência. “O Castelo no Ar” e “A Casa dos Muitos Caminhos” soam bem promissores.

Mas aqui falaremos sobre O Castelo Animado, e a sinopse feita pela editora diz o seguinte: “A jovem Sophie é surpreendida pela perversa Bruxa das Terras Desoladas enquanto trabalha, entediada, na chapelaria da família. Por motivos que ela desconhece, a Bruxa a transforma numa velha de noventa anos, e Sophie não vê outra saída senão fugir para evitar a dor de não ser reconhecida por suas irmãs. Vagando sem rumo, a ‘jovem senhora’ acaba na porta dos fundos do castelo do terrível Mago Howl, conhecido por devorar o coração das moças do povoado.”

É curioso demais. Peguei e comecei a ler. E agora lá vamos nós.

O livro inglês arrebatado pelo estúdio japonês

Publicado em 1986, o tão famoso livro deu origem ao filme de mesmo nome feito pelo Studio Ghibli e dirigido pelo incrível Hayao Miyazaki. Eis minha surpresa: uma obra deliciosa. Pois é. Mas nem sei porque me surpreendi, eu gosto TANTO do filme que tenho o DVD (e nenhum aparelho para assistí-lo).

Aliás, falando do filme, anos atrás, em 2004: – no auge da imaturidade dos meus 14 anos – quando vi O Castelo Animado pela primeira vez e soube que ele era baseado em um livro de uma autora inglesa, eu me perguntei porque um estúdio japonês o tinha escolhido para adaptar em uma animação.

À primeira vista, e com a mente enviesada pela Disney, eu vi: um romance com um castelo, feitiçaria, uma bruxa malvada, uma princesa amaldiçoada em apuros e um príncipe charmoso.

Mas O Castelo Animado NUNCA foi sobre isso, e mesmo sendo lançado em 1986, uma época bastante promissora para ter sua obra arrebatada pela Disney para um filme clichê de princesa, ele acabou sendo ignorado. E olha que o livro tinha tudo para ser banalizado pela Disney, os elementos básicos, como citado acima, estavam ali, fora que não era uma obra pequena.

O Castelo Animado foi indicado para o Boston-Horn Book Award e depois que o filme foi lançado em 2004, o livro ganhou a categoria de “Mythical Bird Phoenix” no Phoenix Award. Inclusive, para aqueles que não sabem, Diana, a autora, foi aluna Tolkien, em Oxford (sim Bilbo, fique com o anel).

E mesmo assim, O Castelo Animado não foi para Disney. Foi para o Studio Ghibli, para as mãos de Miyazaki. E não à toa. O livro explora o inconsciente de forma leve, sem se ater às falácias de um romance banal.

Livro x Filme

Fonte: Arte por Ewa Baran.

Se você, assim como eu, assistiu o filme, achou lindo e não entendeu nada, aproveite este texto para talvez entender um pouco. No livro é mais fácil (ou não) enxergar as nuances que ambos, escritora e diretor, colocaram na obra. E acredito que podemos refletir muito com elas.

Devo dizer aqui que detesto comparações entre mídias. Livro e filme, mangá e anime.

É importante ter o entendimento de que são MÍDIAS DIFERENTES e que contam histórias de formas diferentes, despertam sensações diferentes. Imagens, sons e movimentos trazem todo um aspecto, e o texto traz outro. 

Por isso, não faz sentido COMPARAR as mídias, o que se deve fazer é aproveitar a incrível oportunidade de complementar uma à outra.

E nesse caso em especial, é preciso fazer o recorte de escritora inglesa e diretor japonês. 

Ambos colocaram em suas obras questões as quais se identificam e que, no final, convergem para a mensagem da história. No final deste texto, escrevi uma lista de comparações objetivas, mas não se deixe enganar, ambos livro e filme entregam e muito. E que fique registrado a minha dica de consumir ambas as obras, porque elas se complementam.

Não é sobre romance, é sobre a autoestima pelo inconsciente

No livro, até o último capítulo, não fica evidente que um romance se desenrola entre Howl e Sophie. O sentimento vem como consequência de quando ambos se aceitam como são. E como fazem?

A essência de Sophie não mudou em nenhum momento durante sua jornada – todas suas características, todos seus medos continuaram nela. A filha mais velha, aquela que não vai dar certo, a azarada. Aquela que se viu guiada e obrigada ao seu trabalho do dia a dia. Assim como aquela MUITO observadora, carinhosa e teimosa.

O feitiço da bruxa leva Sophie a ser por fora o que ela sente de si mesma: uma pessoa pouco interessante ou talentosa, limitada e com a qual ninguém se importava. 

Acontece que, agora que ela tem o exterior que acha que representa o que ela sente, e já que ninguém se importava… Bom, ela também não se importaria.

Deixou de querer corresponder às expectativas de sua madrasta (inclusive, achando que a explorava) e partiu para não se sabe bem ao certo onde. 

Pausa aqui. Inclusive, essa é uma das características do livro e do filme: você não sabe bem ao certo o que está acontecendo ou o porquê de algo estar acontecendo. Por que diabos a Sophie se meteu a subir uma montanha depois que ficou idosa? Pois é. E Diana e Miyazaki não fazem questão de explicar, porque não é sobre isso, não é sobre ser objetivo. 

Desista de procurar respostas claras. O livro mostra o inconsciente de Sophie rolando de forma orgânica e ao fundo. Para os atentos, você vê as formas se conectando. E o mais bonito disso é que o inconsciente pode ser interpretado do jeito que for por qualquer um (inclusive, fica a dica da crítica do livro feito pelo blog Leitor Cabuloso), então a obra acaba se tornando ampla e abraça a visão que você quiser dar. 

Do ponto de vista de Sophie, a gente tem a impressão – reafirmado por Howl – de que ela não pensa antes de fazer. O que acontece é que ela só não se dedica a racionalizar, e ela se dedicou ainda mais a essa não racionalização quando se viu idosa e não quis se importar com os outros.

Os poderes de Sophie

Fonte: Arte por Ewa Baran.

Sophie fala com os objetos, sempre falou. E aqui está um outro detalhe que Diana trabalha: o poder das palavras e das sutilezas do ato.

Desde que costurava chapéus, ela tagarelava com as coisas… Discretamente, ao longo do livro, vemos que essas coisas, curiosamente, cumprem o papel ou a história que Sophie criou para elas. 

Surpresa: Sophie é uma bruxa.

Sem perceber, as coisas ao redor de Sophie ganhavam vida, personalidade e poder. O espantalho, a caveira bizarra e suja, a bengala.

Então paremos e pensemos: se é assim, que poder essa característica de dar vida através das palavras exerce sob a própria Sophie? Sob seus relacionamentos?

De forma inconsciente para a protagonista e o leitor, seu poder a leva para sua própria maldição – afinal, falar para si mesma que você é azarada te leva para maldições. No caso dela, a levou a exteriorizar o que achava de si. Mas ela não fala só coisas ruins, e o desenrolar da história é justamente também a jornada e encontro de sua libertação e aceitação.

Não para menos, Calcífer buscou em Sophie – alguém que dá vida e esperança – a solução para a quebra de seu contrato (maldição?) com Howl.

Não que Sophie tenha pego na mão de qualquer um ali e dito o que essa pessoa teria de fazer (ainda bem!), mas com seus toques, falas e trejeitos, ao se transformar internamente, conversando com as possibilidades daquilo que ela se identificava, ela pôde servir de inspiração e referência a quem estava a seu redor.

E Howl?!

Fonte: Arte por Ewa Baran.

E Howl? Bom, o egocêntrico mago sempre fez o que lhe deu na telha (ou era isso que ele achava), ao contrário de Sophie, mas assim como Sophie, ele se limitava a acreditar que era o que era e se isolava.

Brincava com o coração de inúmeras garotas, buscando nelas a aprovação que não encontrava em si mesmo – e uma vez que achava o reconhecimento, ou a paixão delas, as deixava para trás, como se tivesse medo de uma real conexão. 

Em sua casa, criou várias rotas de fuga, seja no apego pela sujeira (e essas aranhas?), no acúmulo de coisas inúteis ou pela porta que dá para inúmeros lugares diferentes.

A questão com Howl, assim como em Sophie, não é sobre fugir, mas fingir que não existe um incômodo. A ponto, inclusive, de se deprimir e derreter quando as coisas não saem como planejado.

Howl não para quieto, sempre saindo para sabe-se lá onde, mas sempre voltando.

Inclusive, uma dessas garotas com quem Howl brincava era a Bruxa das Terras Desoladas que, obcecada pelo que poderia ter sido – e também alguém sem auto-estima -, o persegue. 

Com Sophie em sua vida, falando o tempo todo, bisbilhotando, o mago se vê desafiado. A sujeira vai embora, Sophie está sempre se metendo em tudo, e ao mesmo tempo ele tem mil e uma responsabilidades das quais quer, sim, fugir. E o momento em que ele admite isso para si mesmo é quando ele se liberta daquilo que a Bruxa, e ex, achava ser sua maldição.

Miyazaki x Diana

Fonte: Arte por Ewa Baran.

Uma coisa é fato, O Castelo Animado é sobre se amar para amar ao próximo. Mas quando uma obra cai nas mãos do Miyazaki, fica difícil o cara não colocar uns toques originais.

A guerra é algo bastante presente nos filmes do diretor e aqui não é diferente. Miyazaki insere elementos de guerra que se entrelaçam com o conflito de Howl em poder ou não ser quem é. 

Se no livro Howl é um mulherengo solitário e patético, no filme ele é um soldado que foge de suas obrigações militares – e sua fuga, em ambos os casos, o afasta daquilo que ele realmente é.

No filme, vemos também uma conclusão diferente para a Bruxa das Terras Desoladas. Desmascarada por Sulliman e de volta à sua forma original – uma senhora muito, muito mais velha que Sophie. 

Mas no livro ela é a vilã central, que persegue Howl com uma maldição até o último momento – e temos até plot twist.

Mesmo tendo caminhos diferentes, nas duas obras, vemos o quanto a obsessão por outro, sem cuidar de si, afeta a vida de alguém.

Conclusão

O que me encanta em O Castelo Animado é que é uma história de amor sem banalizar o amor – sem limitá-lo à um plot de salvamento pelos outros. O amor que se compartilha, aquele em que você é capaz de ajudar realmente alguém, só acontece quando de fato você faz isso por si mesmo. 

Me encanta que não temos uma princesa frágil que precisa ser salva, ou um rapaz perdido que precisa de afeto. Temos pessoas se encontrando em si mesmas para encontrarem outras. Que se apoiam de forma harmoniosa, longe de padrões abusivos.

Ambos, Sophie e Howl, têm suas próprias questões e, ao se encontrarem, permanecem sendo quem são, mas com o olhar do outro, se veem de uma nova maneira que os fazem ter mais confiança (Sophie) e respeito próprio (Howl).

E isso não está só neles, porque não existe só o amor romântico – afinal, Calcifer volta para O Castelo Animado.

O primor de Diana e Miyazaki nesta obra está em falar das coisas sem realmente falar delas.

Extra: diferenças entre livro e filme

Fonte: Arte por Ewa Baran.

– A família de Sophie é composta por ela, sua madrasta e duas irmãs, sendo uma delas, meia-irmã. No filme só aparece uma irmã e a madrasta.

– Michael, o aprendiz de Howl é orfão, foi acolhido pelo mago, tem uns 17 anos, negro e se apaixona por uma das irmãs de Sophie. No filme, é um menino de uns 10 anos que simplesmente está ali.

– No livro, a Bruxa das Terras Desoladas também tem um demônio do fogo como Calcifer!

– Calcifer era uma estrela cadente, e fez um pacto com Howl quando ele o encontrou, porque quando uma estrela cai, ela morre. Não há aquela história da Sophie ir para o passado e ver o contrato entre os dois sendo feito.

– O castelo é diferente do que se vê no filme, Miyazaki desenhou de forma muito mais caótica.

– No livro tem lutas muito legais entre Howl e a Bruxa. No filme só vemos Howl em combate na guerra.

– No livro, Howl veio do País de Gales (sim, o que conhecemos), tem doutorado, uma irmã que o despreza, sobrinhos que assistem TV e um carro velho – Sophie inclusive anda nele e fica assustadíssima. No livro, o acesso ao País de Gales é na parte preta da rodela que fica na porta. Essa localização é apagada do filme, o símbolo preto leva os personagens para um campo que representa o passado de Howl.

– No livro, quando eles voltam para a casa de Sophie, eles abrem uma floricultura e vendem as flores daquele lindo jardim – no filme não vemos essa rotina.

– Tem muitos feitiços interessantes no livro que não são usados no filme, como a bota de sete léguas que percorre sete léguas a cada passo do usuário – é bem engraçado ver Sophie usando-as de forma desajeitada.

– No filme, o cachorro se chama Heen, no livro se chama Percival – e ele é uma mistura de partes do príncipe Justin e do mago Sulliman, assim como o espantalho (e não tem aquela história de beijo de amor).

– Aliás, falando dele, o espantalho aparece de forma muito mais significativa no livro, Sophie o acha e ele passa a persegui-la, assustando, e muito, Sophie. 

– No filme, “o mago” Sulliman é mulher e professora de Howl, mas no livro eles não tem essa relação e na verdade a professora se chama Penstemmon, e ela morre.

– No livro, ao contrário do filme, não temos a noção de que Sophie vai rejuvenescendo.

– A jovem Sophie é ruiva no livro!

– No filme, Howl fica enfraquecido pela guerra e é salvo por Sophie que devolve seu coração. No livro, como não há guerras, temos uma batalha final entre Howl e a Bruxa, e seu demônio do fogo. E aí sim, fraco, Howl sobrevive com a ajuda de Sophie.

– No filme, Sophie reconhece prontamente que está apaixonada, no livro ela é mais turrona, e tem cenas de ciúmes cômicas, rs.

Revisão: Karin

 

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