Sobre representatividade LGBTQ+ em mangás e animes

Quando eu era criança, o anime de Cavaleiros do Zodíaco voltou a ser exibido na TV aberta pela Band, no ano de  2004 – 10 anos após a franquia desembarcar em solo brasileiro na extinta TV Manchete – iniciando uma verdadeira “febre” pelos heróis de armadura. Foi nessa exibição que a minha geração conheceu a série, e algo que já havia acontecido na década de 1990 se repetiu: nas brincadeiras entre as crianças, a maioria dos garotos não gostava do Shun.

Ele, Shun de Andrômeda, era o Cavaleiro delicado e sensível que usava uma armadura rosa, logo era automaticamente taxado de gay. A cena em que ele usa o seu corpo para aquecer o de um cavaleiro prestes a morrer congelado tornou-se uma fonte eterna de piadas passadas para cada nova geração que tem contato com a série.

Mesmo sendo um dos protagonistas, os produtos licenciados que traziam sua imagem sobravam nas prateleiras de brinquedos das lojas, ao contrário dos outros quatro protagonistas. Isso sem falar dos personagens Afrodite de Peixes e Misty de Lagarto, personagens de aparência andrógina e que usavam batom. Os três representavam o que ninguém queria ser, porque ninguém queria ser visto como um homem gay.

Mas a questão é: eles eram mesmo gays? Ter uma aparência menos bruta, vestirem uma cor diferente ou mesmo usarem maquiagem condicionava, automaticamente, suas sexualidades? E, se fossem, era uma razão para serem desprezados e anulados? 

Na imagem. Desenho de um rapaz de jovem, de cabelo longo verde, vestindo uma armadura rosa e segurando uma corrente.
Shun de Andrômeda, de cavaleiros do Zodíaco

Embora a questão de sexualidade nem seja abordada em Cavaleiros do Zodíaco – que até sugere um certo “clima” entre ele e a amazona June de Camaleão – , o Shun representou para mim um primeiro passo para me identificar com algum personagem sendo uma pessoa LGBTQ+. Ele sempre foi o meu personagem favorito de Cavaleiros do Zodíaco e, quando penso hoje a respeito, compreendo que é exatamente por mostrar uma possibilidade que eu desconhecia quando criança: que não é preciso ser bruto para ser um herói; é sim possível ser um homem de maneiras diferentes das que eram impostas.

E isso é algo muito interessante de se observar em animes e mangás: a presença de homens cuja sensibilidade e “delicadeza” não são sinônimos de fraqueza. Além do Shun, temos o Kurama (Yu Yu Hakushô) ou mesmo o Yukito (Card Captors Sakura). Não significa que eles sejam gays, é até importante salientar que ser delicado não tem relação com a sexualidade. E mesmo que tivesse, a sexualidade não define caráter, nem na ficção e nem na vida real. 

Kurama, jovem de cabelo vermelho e camisa vermelha segurando uma rosa. Yukito, jovem de cabelo castanho claro, óculos, segurando um saco de anpans
Kurama (Yu Yu Hakushô) e Yukito Tsukishiro (Card Captor Sakura)

Quando conheci, na adolescência, animes que focavam em romances homoafetivos, os chamados Boys Love – na época ainda chamados de Yaoi -, eu tive um certo choque. Em uma dinâmica que girava sempre em torno do papel sexual que cada um desempenharia, muitos BLs traziam modelos doentios de relacionamentos, pautando a satisfação individual pela dor do parceiro, e muitas das histórias terminando com finais trágicos. Muitos animes não chegavam a ter uma história de fato, e sim apenas personagens gays que performavam um jogo de poder pelo sexo, não indo além. Lembro de pensar na época: “é assim que uma relação entre dois homens funciona?”. 

Toda generalização é complicada. Mas no caso de muitas das generalizações que ocorrem com pessoas LGBTQ+ em animes e mangás há um agravante: esses personagens são muitas vezes desumanizados, servindo unicamente como alegorias de um ou outro fetiche, ou da visão deturpada que se tem sobre essas pessoas no mundo real. E não apenas em obras com foco em pessoas LGBTQ+, mas em demais histórias que trazem personagens pertencentes a comunidade.

Um exemplo bem grotesco e famoso no Brasil é o de Yu Yu Hakushô. Em uma batalha contra a youkai Miyuki, o protagonista Yusuke possui uma atitude extremamente transfóbica, apalpando suas genitais para “confirmar” que ela era transsexual, e fazendo chacota disso. Ou mesmo o vilão General Blue, de Dragon Ball, um personagem gay que declarava odiar mulheres e era um nazista. Isso tudo cria, como diz a amiga Gi Valin, uma representação, e não uma representatividade

No caso de séries BL, uma das razões possíveis para essas construções problemáticas, além da própria sociedade constituída em preconceitos sobre o outro, é que muitas dessas séries não são de autoria de artistas LGBTQ+. Aliás, a grande maioria de mangás BLs no Japão são produzidos por mulheres, para que outras mulheres leiam. E nisso, acontece uma série de projeções problemáticas de relacionamentos heterossexuais – como a ideia de que existe “um homem e uma mulher” em uma relação entre dois homens, além da fetichização que se faz sobre pessoas LGBTQ+. 

Isso significa que somente artistas LGBTQ+ possam criar histórias sobre esses personagens? Não, longe disso. Mas na maioria das vezes, a complexidade e diversidade de situações e personagens é gritante quando um autor LGBTQ+ cria uma história que aborda essas temáticas. Em comparação, outros artistas comumente usam esses personagens como meras alegorias ou alívios-cômicos de suas narrativas. 

Na imagem, Haruka e Michiru, casal LGBTQ+ de Sailor Moon
Haruka e Michiru, as Sailors Uranus e Neptune

Assim como outras formas de arte, os quadrinhos refletem, em muito, o seu tempo. Mesmo em obras de ficção científica, com alienígenas e ambientadas em outras realidades e universos, muitos dos ideais e da moral presente na história se relacionam com o contexto social e histórico de criação da obra. E isso ocorre na forma com que temáticas LGBTQ+ foram e são abordadas nas obras.

Mas é preciso destacar também artistas que vieram produzindo obras de temáticas LGBTQ+ mesmo em períodos mais difíceis, como os muitos artistas gays que desenham os chamados barazoku, gênero de temática erótica voltado para homens gays. Entre essas pessoas estão: Gengoroh Tagame, Jiraya, além de Riyoko Ikeda, a autora do revolucionário Rosa de Versalhes – mangá lançado na década de 1970 e que abordava temas como bissexualidade, androginia e gênero.

O namoro das personagens Haruka Tennoh e Michiru Kaioh de Sailor Moon, da artista Naoko Takeuchi, também foi algo muito importante para a representatividade LGBTQ+ nos animes na década de 1990. 

Com o próprio avanço de pautas e movimentos LGBTQ+ ao redor do mundo, é notável o surgimento de mangás de temática LGBTQ+ com abordagens diferentes. Destaco aqui Given, Joy, Ganbare Nakamura-kun, Boys Run the Riot, The bride was a Boy, Bloom Into You, O Marido do Meu Irmão, Minha Experiência Lésbica com a Solidão, entre outros. Todas obras que trazem personagens complexos, em situações diversas e cuja sexualidade é apenas uma de suas características. 

Uma série de três mangás diferentes que abordam temas lgbtq+

E não é sobre querer que todos os personagens sejam LGBTQ+ ou que todas as histórias tratem de tais assuntos. É simplesmente sobre não se enxergar de forma deturpada pela sua sexualidade, pelo seu gênero, pela sua etnia ou por qualquer outra característica. É sobre toda a diversidade de pessoas que consomem animes e mangás, mas que raramente se veem representadas e quando são, muitas vezes é de forma pejorativa. É sobre a identidade de gênero ou sexualidade não serem tratadas como condicionantes da personalidade ou caráter de alguém, e sim uma característica como outra qualquer. 

Ainda há muito em que avançar nos animes e mangás, e principalmente no dia a dia. Mas é muito satisfatório abrir um quadrinho para ler, ou começar a ver um anime, e se deparar com um personagem LGBTQ+ que não é um mero recurso narrativo ou só mais uma fantasia deturpada sobre nós. É muito satisfatório poder se ver com outros olhos e não sentir vergonha ou indignação. Orgulho não é só uma hashtag, é um horizonte a ser seguido, do qual não abriremos mão. 

Videomaker e ilustrador, formado em Design Gráfico, coleciono mangás desde os 9 anos. Fanboy da CLAMP e traumatizado por Nana não ter acabado ainda, tenho grande interesse em pensar quadrinhos e seus contextos sociais. Atualmente pesquiso quadrinhos e diversidade na USP e trabalho com jornalismo