Japão e tatuagens – Uma história conturbada

Em 31 de dezembro de 2020, Kazuto Ioka mantinha seu cinturão de campeão mundial de peso super-mosca após nocautear o também japonês Kosei Tanaka mas, o que era para ser motivo de festa, logo se tornou uma preocupação para o campeão.

 Uma vez que a Japan Boxing commission (JBC)  pode penalizar Ioka por ter exibido suas tatuagens durante o confronto contra Tanaka. A organização possui uma regra que proíbe os lutadores de terem cabelos compridos, barbas e tatuagens que possam incomodar o público.

Apesar das críticas, a JBC se defendeu dizendo que é difícil determinar quais tatuagens são por estilo, e que a tatuagem associada ao crime organizado ainda é uma realidade na terra do sol nascente. Contudo, o caso de Ioka é só o capítulo mais recente da longa e conturbada relação do Japão com as tatuagens

A história da tatuagem no Japão

A tatuagem já estava presente nas ilhas japonesas desde o período Jomon (14.000 – 300 a.C.), inclusive essa forma de arte  é relatada no gishi wajin den, o texto de história chinesa que contém os mais antigos relatos sobre os homens de Wa, como os chineses  da época se referiam aos habitantes das ilhas japonesas.

Os povos das ilhas decoravam seus corpos com desenhos de peixes e conchas, mas as tatuagens não eram vistas apenas como forma de adereço, em alguns contextos também tinham um componente religioso, servindo para  proteção.

Seguramente dentre essas tribos a que mais chama atenção  pelo uso de tatuagens são os Ainus. Originários da ilha de Hokkaido, suas terras se estendiam do norte de Honshu até as ilhas Curilas. Os Ainus costumavam se tatuar ao redor da boca, sobrancelhas, testas e bochechas.

Mas mesmo sendo parte da vida do Japão, isso não significa que as tatuagens sempre foram bem aceitas. Por volta do ano 710 se deu o primeiro registro das Irezumi sendo utilizadas como forma de punição pelo Imperador.

exemplos de tatuagem de punição
exemplos de tatuagem de punição

 

Posteriormente, os condenados por roubo ou furto passaram a ser tatuados na cabeça, assim todos poderiam ver que a pessoa cometeu um crime, e cada região possuía um desenho específico para identificar os criminosos.

Já durante o período Edo (1603 – 1868), o shogun Tokugawa Ieyasu advogou contra as tatuagens se baseando na doutrina confucionista, paradoxalmente o período também se tornou a era de ouro das tatuagens no Japão.

tatuagens de punição 2

As tatuagens viraram fenômeno “fashion”, em grande parte inspirado na novela chinesa Margem da Água, que retrata personagens cobertos de tatuagens que se rebelam contra  as autoridades. As tatuagens dessa época floresceram junto com outras artes como kabuki e ukiyo-e, constantemente influenciando umas às outras.

Entretanto, as autoridades de Edo não gostaram nada de ver a população se inspirando em um livro tão “subversivo”e tentaram banir as tatuagens. No entanto, devido a grande popularidade das tatuagens, esse banimento se mostrou impossível de ser posto em prática.

ilustração de a margem da agua
ilustração de a margem da agua

 A era Edo também trouxe o início da relação dos Yakuza com essa forma de arte ancestral. As tatuagens eram vistas pelos membros como uma maneira dolorosa de provar coragem e que tinham adotado aquele meio de vida para sempre.

Posteriormente, com o nascimento da era Meiji (1868 – 1912), o Japão passou por grandes mudanças estruturais e socioeconômicas em uma tentativa de modernizar o país. Entre essas mudanças, uma das mais sensíveis foi a reabertura da terra do sol nascente para o resto do mundo após 2000 anos de isolamento. 

Dessa forma  o Japão passou a receber um grande número de visitantes de outros países, e afim de se mostrar como país “sofisticado” e “moderno”, o governo Meiji instaurou uma nova proibição às tatuagens. A lei não pôs fim à tatuagem nos setores da sociedade em que estavam firmemente estabelecidos, mas junto com a instauração de normas contra nudez, fizeram com que as Irezumi ficassem escondidas.

Contudo, os Ainus foram fortemente impactados por esse banimento. Forçadas a abandonar parte de sua herança cultural, muitas mulheres Ainus  foram presas sob a acusação de terem costumes “bárbaros”, chegando ao ponto de terem suas tatuagens removidas com ácido clorídrico.

Foi só durante a ocupação americana em 1948 que as tatuagens voltaram a ser permitdas por lei. Como resultado da queda da proibição os tatuadores japoneses começaram a atender os soldados americanos, principalmente nos arredores das bases de Yokosuka.

Yakuza e as tatuagens

Outro ponto pra lá de polêmico envolvendo a relação dos japoneses com tatuagens está no fato de que essa forma de arte está fortemente relacionada aos membros do crime organizado, os Yakuzas.

Aliás, é importante deixar claro que Yakuza não é um grupo propriamente dito, mas sim o termo pelo qual os japoneses chamam os membros dos sindicatos do crime no Japão. Estima-se que existam cerca de 22 desses grupos que comportam cerca de 39 a 40 mil membros.

Assim sendo, esses grupos praticam uma gama de atividades criminosas como: chantagem, extorsão, contrabando, tráfico de drogas, jogos de azar, agiotagem, prostituição, além de comandarem outras tantas atividades como restaurantes, bares, empresas de transporte, agências de talentos, táxis, fábricas e outros tipos de negócio.

Diferente do que ocorre na américa do norte, onde as tatuagens servem como forma de identificar o pertencimento a uma determinada gang, a tatuagem para o Yakuza tornou-se um modo de representar um momento na vida do membro, ou algo de importância simbólica para ele.

As tatuagens geralmente cobrem quase o corpo inteiro, das costas às nádegas, passando pela parte superior das pernas e braços. Mas não é qualquer integrante que pode se tatuar, para isso é necessário a autorização de um mestre de tatuagem. Elas custam uma pequena fortuna.

O estigma das tatuagens no Japão atual

Como os Yakuzas costumavam se reunir em casas de banho, donos desses locais passaram a adotar o banimento de tatuagens como forma de impedir que os membros do crime organizado se reunissem nos seus estabelecimentos.

Mas esse banimento não se restringe apenas às casas de banho, muitos outros negócios ou restringem tatuagens visíveis ou banem completamente pessoas tatuadas de  seus estabelecimentos.

Além disso, em 2015, o governo japonês enquadrou o tatuador Taiki Masuda numa lei pouco conhecida até então. A lei em questão proíbia qualquer pessoa que não possuísse licença para exercer a medicina, de realizar práticas médicas.

Tudo isso porque em 2001 o ministério da saúde japonês instituiu que  colocar pigmento na ponta de uma agulha para inseri-lo na pele é uma prática médica.

Contudo, Isso gerou uma reação dos tatuadores, e uma longa batalha jurídica se iniciou, tendo fim apenas em 2020 quando a suprema corte do país decidiu que o ato de tatuar não constitui uma prática médica.

Estrangeiros no Japão e a tatuagem

Na última década, o Japão se consolidou ainda mais como um grande destino turístico, com um aumento de 467%  de visitantes e com a perspectiva, ainda que turbulenta por conta da pandemia, dos Jogos Olímpicos é normal que um número cada vez maior de pessoas com tatuagens  tenham dúvidas de como serão recebidas no país. 

Do mesmo modo, as autoridades japonesas também compartilham esse receio. Por isso a secretaria de turismo do Japão conduziu uma pesquisa em 2015 com 3.800 estabelecimentos para saber como eles reagiram diante de clientes tatuados.

Como resultado, dos 600 estabelecimentos que responderam à pesquisa, 56% disseram que recusariam a entrada de pessoas tatuadas, 13% permitiram o acesso desde de que as tatuagens fossem cobertas e 31% permitiriam incondicionalmente.

No entanto, apesar de muitos estabelecimentos ainda serem reticentes em aceitar clientes tatuados, muito dificilmente os turistas vão passar por algum tipo de constrangimento.

Como afirma Anderson Isago, mais conhecido como Dandi, de 39 anos, tatuador no Japão há mais de 12 anos e dono do estúdio de tatuagem Cranium Tattoo na cidade de Minokamo na província de Gifu, os japoneses são instruídos a atender a todos da melhor maneira.

“[…] Os japoneses são treinados para atender as pessoas igual de uma pessoa pra outra, você não vai ver alguém atender você de cara feia, vão te tratar com o maior respeito você sendo tatuado ou não”, explica Dandi.

Yudo Akemi, 21 anos, que trabalha há 2 anos como designer de tatuagem e atualmente é aprendiz na Cranium Tattoo, reafirma essa visão sobre o tratamento dos funcionários no Japão. 

“O treinamento de funcionários é bem rígido em relação ao atendimento, você nunca vai ser destratado ou recebido de cara feia”, acrescenta Akemi.

Para Akemi e Dandi as tatugens são vistas de maneiras diferente em estrangeiros e japoneses. Segundo eles as tatuagens dos estrangeiros são vistas como algo fashion

“[…] Tatuagem em estrangeiro é bem mais aceito como estilo, mesmo se for a mesma tatuagem, no mesmo local, o japonês vai ser julgado com maior preconceito”, afirma Akemi.

Akemi e Dandi também enxergam as Olimpíadas como um ponto de virada para as tatuagens no país e destacam o esforço do governo japonês em preparar o país para receber turistas tatuados.

“[…] As propagandas na televisão para as Olimpíadas já estavam preparando os japoneses para os turistas tatuados, acabou que não vimos o resultado disso, pelo menos ainda, mas acredito que a opinião de muitos japoneses vai mudar em relação à tatuagem.Até os famosos Onsen (casas de banho), que tinham proibição de entrada para quem tem tatuagem, já estão mudando”, diz Dandi.

“O governo tentou ao máximo acostumar a população ao que poderiam ver, agora os jovens estão mais interessados, então acho que todos só estão indo com a maré e aceitando as novidades”, complementa Akemi.

Leia a entrevista na íntegra com dois tatuadores Brasileiros no Japão

  • Há quanto tempo vocês moram no Japão? 

Akemi3 anos.

Dandi – 22 anos.

  • Em qual cidade vocês moram?

Akemi – Kani Shi, na província de Gifu.

DandiMinokamo (estado de Gifu).

  • Vocês têm alguma tatuagem?

AkemiSim, atualmente boa parte delas foram auto tatuadas para treino.

DandiSim, muitas.

tatuagens de tipografia

  • Como é, em geral, a reação dos japoneses com pessoas tatuadas? Eles se incomodam? Falam algo? Ficam olhando?  

AkemiEles olham bastante e comentam entre eles, mas nunca dizem nada diretamente ou em voz alta, a política de não se meter com as escolhas alheias é bem forte por aqui.

Dandi  – Depende muito da região, nas cidades do interior existe ainda um certo preconceito de algumas pessoas. Os japoneses não vão chegar ao ponto de falar alguma coisa, eles são muito reservados, mas não sabem disfarçar olhares.

  • Existe diferença de tratamento entre japoneses tatuados e estrangeiros tatuados?

tatuagens de caveira

Akemi Com certeza, tatuagem em estrangeiro é bem mais aceita como estilo, mesmo se for a mesma tatuagem, no mesmo local, o japonês vai ser julgado com maior preconceito.

Dandi Existe sim, os japoneses tatuados sofrem mais, principalmente em relação à arrumar empregos bons. Mesmo que não deixem a tattoo à mostra, vão sempre relacionar o japonês tatuado ao integrante da máfia. Estrangeiros também sofrem para arrumar empregos às vezes, mas os japoneses veem as tattoos deles de outra forma, como algo “fashion”.

  • Qual é o perfil dos clientes que vocês atendem no estúdio de tatuagem?  

Akemi Eu atualmente sou aprendiz, então não atendo diretamente, mas é interessante ver que mesmo no Japão aparecem todos os tipos de pessoas.

Dandi Tem de todos os perfis possíveis, a maioria são da área de construção civil, caminhoneiros, pessoas que trabalham em fábricas, etc.

  • Em 2015 começou uma longa batalha judicial entre o ministério da saúde japonês e os tatuadores por conta da decisão de exigir licença médica para que os tatuadores pudessem trabalhar. Essa batalha durou até 2020 quando a suprema corte optou pela não obrigatoriedade da licença. Isso afetou de alguma forma o seu trabalho?

Akemi Quando comecei a ir atrás de aprender sobre tatuagem, isso me deixava preocupada. Quando passei a ter contato com estúdios, vi que a maioria lidava bem com a “ilegalidade”, num geral sempre foi um tipo de negócio discreto.

Dandi –  Não afetou, teve alguns tatuadores que foram afetados mais pela região de Osaka, onde a polícia fechou alguns estúdios. Essa lei da licença médica já existia há mais de 40 anos aqui, mas poucas pessoas sabiam dela, eu mesmo só soube em 2015. A tatuagem foi vista como arte, mas o tatuador em si ainda não foi visto como uma profissão. Agora temos uma associação que está tentando mudar isso, fazer ser reconhecido como profissão e permitir a venda e a entrada de agulhas, que ainda necessitam de licença médica para poder comprar.

tatuagens de Samurai

  • Você nota uma diferença de opinião sobre as tatuagens entre os japoneses mais velhos e os mais novos?

Akemi os mais velhos têm receio num geral, mas aparentam curiosidade também, é bem divertido. Os jovens já acham que é estiloso ou que você tem muita coragem para tatuar. Mesmo os mais velhos, eu sempre tive uma boa relação com tatuagens, mas acho que por ser mulher eles não acreditam que eu possa ser problemática, os homens recebem mais olhares tortos.

Dandi Sim, japoneses mais velhos associam a tatuagem à máfia. Os mais novos já veem como arte ou “fashion”.

  • Você acha que os grandes eventos recentes que o Japão sediou e vai sediar, assim como o aumento do número de turistas (antes da pandemia, é claro), têm algum efeito sob a percepção das pessoas sobre tatuagem?

Akemi O governo tentou ao máximo acostumar a população ao que poderiam ver, agora os jovens estão mais interessados, então acho que todos só estão indo com a maré e aceitando as novidades.

Dandi Têm sim, as propagandas na televisão para as Olimpíadas já estavam preparando os japoneses para os turistas tatuados, acabou que não vimos o resultado disso, pelo menos ainda, mas acredito que a opinião de muitos japoneses vai mudar em relação à tatuagem. Até os famosos Onsen (casas de banho), que tinham proibição de entrada para quem tem tatuagem, já estão mudando.

  • Você percebe que os estabelecimentos têm preconceito em atender pessoas tatuadas?

Akemi O treinamento de funcionários é bem rígido em relação ao atendimento, você nunca vai ser destratado ou recebido de cara feia

Dandi Hoje em dia não, já ouvi histórias, mas nunca aconteceu comigo, nem com amigos próximos. Os japoneses são treinados para atender as pessoas igual de uma pessoa pra outra, você não vai ver alguém atender você de cara feia, vão te tratar com o maior respeito, você sendo tatuado ou não.

  • No seu entender, qual a maior dificuldade para acabar com o estigma que a tatuagem sofre?

Akemi Bom, o preconceito existe há muito tempo, as pessoas não mudam do nada e infelizmente só irão aceitar quando quiserem. Quanto aos tatuadores, só nos resta continuar mostrando que a nossa profissão é uma forma válida de arte e que merece ser apreciada. 

Dandi O preconceito e a ligação da tatuagem à máfia. Acredito que em algum momento a tatuagem vai ser vista como apenas arte, por um lado acho bom a tatuagem ser algo underground, vivemos nosso próprio mundo, cada um com sua própria regra e maneira de ver e pensar sobre a tatuagem.

  • O que os japoneses costumam tatuar?

Akemi Eu vejo muito chicano e blackwork, é estranho pensar que no país da cultura kawaii, o minimalismo do preto e branco domine esse ramo.

DandiA maioria faz tattoos que não sejam o do estilo japonês. A maioria faz tatuagens preto e cinza. São bastante influenciados por cantores famosos, jogadores de futebol, etc.

 

Você pode ver mais do trabalho de Dandi e Akemi no instagram @craniumtattoo e em @ssleepy_bunny.

 

Referências:

https://edition.cnn.com/style/article/tattoos-in-japanese-prints/index.html

https://www.tsunagujapan.com/all-you-need-to-know-about-tattoos-in-japan/

https://tattoos.com/japanese-tattooing/

https://sites.wp.odu.edu/bodylore/2018/02/28/inked-and-exiled-a-history-of-tattooing-in-japan/

https://soranews24.com/2013/03/14/criminals-of-japans-edo-period-were-often-punished-by-getting-face-tattoos/

https://www.japantimes.co.jp/life/2014/05/03/lifestyle/japan-inked-country-reclaim-tattoo-culture

https://www.nippon.com/en/views/b06701/

https://skemman.is/bitstream/1946/18070/1/Kristinn%20%C3%81rnason%20-%20Yakuza.pdf 

https://www.youtube.com/watch?v=ZhGFbnSoMGQ

https://www.terra.com.br/noticias/mundo/tatuagens-no-japao-por-que-elas-sao-tao-ligadas-a-yakuza,dda140945cb6b7f5538b67ca5768d02fze5d83x9.html

Por que tatuagem virou uma questão médica e jurídica no Japão

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 Revisão: Karin Cavalcante

Jornalista , editor do podcast do @BolsaNerd , redator do bolsa nerd blog e do Genkidama . See you , space cowboy...