Memórias de uma Gueixa – A Polêmica Ainda Vale?

Memórias de uma Gueixa e suas controvérsias sobre elenco e representação da cultura japonesa ainda são relevantes?

Memórias de uma Gueixa foi uma produção de Steven Spielberg e dirigida por Rob Marshall, baseado em best-seller homônimo. Estreou em 2005 e recebeu 6 indicações para o Oscar, ganhando três: direção de arte, cinematografia e figurino. Ambientado no Japão, desde o pré até o pós Segunda Guerra, o filme contava a história da jovem gueixa Sayuri. Da infância à maturidade, ela luta para sobreviver, tornar-se uma gueixa de alta classe e viver um grande amor.

Visualmente deslumbrante, o filme foi bem sucedido nas bilheterias mas muito criticado. A principal razão das críticas era o elenco, que tinha três atrizes de origem chinesa nos principais papéis. 

memórias de uma gueixa
O filme tem um visual deslumbrante.

 

Memórias de Uma Gueixa – o livro

 

A obra escrita por Arthur Golden foi lançada em 1997. Ela já tinha a sua própria polêmica, que rendeu processo contra o autor. E sim, de certa forma tinha relação com os problemas que o filme teria depois.

Tudo começou quando, em suas pesquisas para escrever o livro, Arthur Golden topou com Mineko Iwasaki, uma gueixa aposentada.

Iwasaki era famosa em sua profissão, considerada quase uma lenda, a melhor de seu tempo. Já tinha se apresentado para a Rainha Elizabeth e o Príncipe Charles. Ela concordou em ser entrevistada por Golden, porém com condição de confidencialidade.

memórias de uma gueixa - o livro
O livro já tinha causado problemas.

A atitude era compreensível, já que discrição era importantíssima nesse ramo de atividade. Além disso, o mundo das gueixas já sofrera bastante com a visão errada que o ocidente tinha a seu respeito. Ninguém que trabalhasse nessa indústria correria o risco de se abrir para um estrangeiro sem ser em segredo. Pelo menos, não na época em que Golden estava fazendo suas pesquisas.

Infelizmente, depois que a obra foi lançada, o escritor não foi nada discreto na hora de fazer sua divulgação. Ele não só colocou o nome de Mineko Iwasaki nos agradecimentos, mas também falou sobre seu suposto mizuage em entrevista.

Mizuage é uma espécie de cerimônia onde a virgindade de uma aprendiz de gueixa vai a leilão. Golden afirmou que esse leilão da virgindade da protagonista do livro foi “emprestado” da experiência pessoal de Iwasaki. Ele inclusive disse o valor que o mizuage dela teria alcançado: 850 mil dólares.

 

Escândalo

 

Iwasaki ficou furiosa por ter seu envolvimento com o livro revelado. Para piorar, a história  tinha várias licenças poéticas que embora parecessem insignificantes para os ocidentais, irritaram bastante os japoneses. Para eles, isso fazia com que as personagens, principalmente a protagonista, parecessem mais americanas que japonesas.

Por causa disso, ela foi considerada uma “traidora” e execrada por seus compatriotas. Chegou até a receber ameaças de morte. 

Mineko Iwasaki.

Entretanto, o que mais parece ter enraivecido Iwasaki foi a questão do mizuage. Ela disse que nunca passou por essa cerimônia (que realmente não é obrigatória). 

Mineko Iwasaki processou Arthur Golden por quebra de contrato e difamação. Em 2003 a situação se resolveu com um acordo, cujo valor não foi revelado.

 

Memórias de uma Gueixa – o filme

 

Dizem que quando começaram as audições para escalação do elenco de Memórias de uma Gueixa, atrizes japonesas foram convidadas mas não compareceram. Algumas delas teriam dito que não estavam à altura de um papel tão complexo.

Isso teria sido mentira da produção do filme para justificar a escolha do elenco? Ou foi um “soft boicote” das atrizes japonesas por conta do livro? Ou elas simplesmente acharam que participar do filme ia render mais dor de cabeça do que fama e fortuna?

Nunca saberemos com certeza.

memórias de uma gueixa: elenco
Da esquerda para direita: Zhang Ziyi, Michelle Yeoh, e Gong Li.

No final das contas o diretor Rob Marshall afirmou que escolheu as atrizes principais considerando talento e “star power”.

Star power é a capacidade de uma atriz/ator de atrair público para um filme. De fato, Zhang Ziyi (Sayuri), Michelle Yeoh (Mameha) e Gong Li (Hatsumomo) tinham mais desse poder do que qualquer atriz japonesa na época. As duas primeiras estavam em alta por causa do sucesso de O Tigre e o Dragão. A terceira tinha uma boa reputação por filmes elogiados pela crítica como Adeus Minha Concubina.

Não há como negar, no entanto, que o descontentamento foi geral, tanto entre japoneses quanto chineses.

 

Reações no Japão e na China

 

Os japoneses já não estavam muito receptivos por ser a adaptação de um livro que muitos acharam no mínimo desrespeitoso. A escalação de atrizes chinesas foi como acrescentar insulto à injúria.

Já os chineses não gostaram de ver suas grandes estrelas num filme que (aparentemente) enaltecia o Japão. Afinal, o país cometera muitas atrocidades contra eles, boa parte justamente no período em que se passava a história.

Mesmo sabendo que era só um filme, com todo um contexto dentro dele, os chineses só enxergaram uma coisa.

Ken Watanabe (Presidente) e Zhang Ziyi (Sayuri).

A maior estrela deles, Zhang Ziyi, submissa a homens japoneses. Era algo que trazia lembranças dolorosas.

O resultado: Memórias de uma Gueixa foi banido da China. E, da mesma forma que aconteceu com Mineko Iwasaki, Zhang Ziyi e Gong Li foram execradas por seus compatriotas.

 

 

Mudou alguma coisa?

 

Desde Memórias de uma Gueixa, não houve mais grandes produções hollywoodianas com esse tipo de tema e abordagem. Foram lançados filmes como 47 Ronins, por exemplo, que justificava (acertadamente) suas licenças poéticas com uma abordagem 100% fantasiosa. Ou projetos mais simples como Sempre a seu Lado (quem poderia se irritar com a história de um cachorro?)

Sayuri no pós-guerra.

Atualmente, quando a discussão sobre questões raciais e de representatividade está em voga, Hollywood provavelmente será mais cautelosa. Não vai chegar ao ponto de tirar o quesito star power da seleção de elenco, claro. Entretanto, mudanças vem acontecendo nos últimos anos.

Quanto as relações entre China e Japão, porém, ainda há muitas dívidas históricas a pagar e antigas feridas a curar. Só depois disso Memórias de uma Gueixa talvez possa ser visto com calma, tanto por japoneses quanto chineses.

 

Fontes:

 

Independent (jornal)

Academia.edu (site)

Globo.com

Wikipedia

IMDb

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