Review: Grama – Keum Suk Gendry Kim

ALERTA DE GATILHO

A guerra Sino-Japonesa deixa feridas abertas até hoje nos países envolvidos e dentre essas feridas, uma das mais sensíveis é sem dúvida a das “mulheres conforto,” termo amplamente utilizado para se referir às mulheres que foram escravas sexuais dos soldados do exército imperial japonês. Calcula-se que cerca de 200 mil mulheres foram feitas escravas entre 1937 até 1945. Em sua maior parte coreanas e chinesas.

É exatamente essa questão que o manhwa Grama, escrito por Keum Suk Gendry Kim aborda. Grama conta a história real de Ok-sun Lee, sequestrada aos 15 anos, levada da Coreia até a China sob domínio japonês e feita escrava sexual.

Ao colocar o drama de Ok-sun no centro da história, a autora traça um panorama do conflito e escancara toda a situação de miséria social  que se abateu sobre a Coreia e a China durante e após o conflito, assim como escancara a realidade de muitas outras mulheres vítimas dessa mesma barbárie, que apesar de todos os traumas, encontraram uma maneira de continuar em frente e reivindicar compensações adequadas. E tudo isso é feito não só através de uma narrativa poderosa, mas também dos suaves desenhos da quadrinista.

O traço leve e gracioso da autora contrasta com o peso da narrativa biográfica da qual estamos submetidos, e de certa forma deixa a história um pouco mais palatável, sem diminuir o impacto dos horrores sofridos por Ok-sun. Tudo está lá presente, de forma vivida sem em nenhum momento ser explícito. Nos momentos de maior violência, a autora opta pelos uso de sombras e quadros totalmente em preto que trazem o impacto do momento sem precisar ser gráfico, como na sequência de três páginas inteiras de quadros negros que acontece em um momento na história captando assim todo o terror pela qual a protagonista passava.

Outro ponto a ser destacado da obra é a escolha narrativa de Gendry Kim, ao se inserir na trama e alternar entre passado e presente, a autora evoca o clássico Maus , de art Spiegelman, e traz para o quadrinho uma quebra  dos momentos de maior tensão, assim não só torna  a leitura mais fluida como também insere na narrativa um recurso que permite que o leitor vislumbrar os impactos dos acontecimentos do passado sobre o presente.

Esse recurso permite também abrir espaço para as reflexões da autora. Em vários momentos a vemos, inclusive, questionando o seu próprio papel, ao fazer alguém revirar os traumas do passado. Isso torna a quadrinhos muito mais pessoal e aproxima o leitor.

Vale o ressaltar também o excelente trabalho da Editora Pipoca e Nanquim. O manhwa conta com uma sobrecapa com acabamento soft touch, verniz, capa dura, e papel off-set. Além disso, há vários textos na edição que ajudam a contextualizar a obra e enriquecem a experiência de leitura.

Em suma, Grama é um quadrinho forte com uma mensagem poderosa que traça um panorama sobre toda questão envolvendo as mulheres de conforto. Ao tratar um assunto tão delicado com delicadeza, Keum Suk Gendry Kim traz para perto do leitor uma das maiores mazelas humanas do século XX .

 

Saiba mais: Coreia e Japão e a questão das indenizações

Mesmo após 75 anos, a questão envolvendo indenizações às vítimas de escravidão sexual segue sendo um ponto de tensão entre os governos de Tóquio e Seul. A primeira tentativa de se chegar a um acordo em relação a indenizações para as vítimas do exército imperial japonês se deu em 1965, através do Tratado da Relações Básicas entre Japão e a Coreia do Sul.

Ficou acordado que  o governo coreano receberia cerca de 800 milhões de dólares em empréstimos e doações e em troca renunciaria ao direito de buscar maiores reparações contra os crimes de guerra ocorridos. 

No entanto, os críticos desse acordo alegam que o governante da época, Park Chung-hee , buscava fazer com que o país tivesse um crescimento em dígitos duplos sendo assim necessário uma aproximação com o Japão. Ainda pesa o fato que o governo de Chung -Hee era um governo de viés autoritário, com supressão de liberdades individuais, controle da imprensa e partidos de oposição e, portanto, esse acordo não refletia o sentimento do povo coreano.

Após a redemocratização ocorrida em no final dos anos 80, a questão das “mulheres conforto” voltou a tona novamente. Em 1993, o Japão divulgou uma declaração na qual se desculpava às mulheres vítimas de escravidão sexual.

Já em 2015, os governos dos dois países chegaram a um acordo de indenização às vítimas . O Japão depositou valor de 1 bilhão de ienes (cerca de 8,3 milhões de dólares na cotação da época) para um fundo voltado às vítimas ainda vivas . Nas palavras do ministro das Relações Exteriores coreana, Yun Byung disse que o acordo era visto como “definitivo e irreversível”, contudo, desde do inicio, o acordo sofreu fortes críticas internas na Coreia por não ter levado em consideração os anseios das vítimas, e do ponto de vista da opinião pública coreana, se tratar de uma solução conveniente ao Japão. Isso resultou na extinção do fundo pelo presidente Moon Jae-in em 2018. 

De lá pra cá, as relações entre os países têm apresentado uma piora. Em agosto de 2019, uma estátua representando as mulheres de conforto foi retirada de uma exposição de arte após seguidas ameaças feitas por telefone e email. Os organizadores também usaram como justificativa para a decisão a crise diplomática gerada a partir do anúncio feito pela Coreia, de que romperia o acordo de cooperação de inteligência militar com o Japão.

Referências

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2007/03/printable/070326_japao_escravas_dg.shtml

https://operamundi.uol.com.br/analise/61536/coreia-do-sul-japao-e-as-feridas-abertas-da-colonizacao

https://www.washingtonpost.com/outlook/2019/08/11/how-japans-failure-atone-past-sins-threatens-global-economy/

https://www.britannica.com/biography/Park-Chung-Hee

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/12/coreia-do-sul-e-japao-alcancam-acordo-sobre-escravidao-sexual.html

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/09/02/japao-usa-piora-na-relacao-com-a-coreia-do-sul-para-justificar-retirada-de-estatua-de-exibicao.ghtml

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/08/22/coreia-do-sul-decide-romper-acordo-de-cooperacao-de-inteligencia-militar-com-o-japao.ghtml

https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/07/05/interna_internacional,1067317/coreia-do-sul-liquida-fundo-criado-com-o-japao-para-mulheres-de-confo.shtml

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/a-cruel-saga-das-escravas-sexuais-coreanas-segunda-guerra.phtml

 

Revisão: Karol Facaia

 

Jornalista , editor do podcast do @BolsaNerd , redator do bolsa nerd blog e do Genkidama . See you , space cowboy...