A Otakização do noitaminA

Afinal, como um simples bloco de programação tornou-se tão importante? E porque Guilty Crown e BLACK ROCK SHOOTER podem ter marcado o “fim” deste?

Em Fevereiro/2012 estreia nas madrugadas de Quinta para Sexta na Fuji TV BLACK ROCK SHOOTER, baseado livremente no art concept do artista japonês huke que batiza uma das melhores e mais conhecidas músicas feitas utilizando-se o famoso software de voz da YAMAHA Vocaloid pelo grupo supercell [que basicamente trata-se do músico ryo e diversos desenhistas – como huke – associados].

BLACK ROCK SHOOTER é um conceito que pode ser resumido como uma girl with gun [garota armada] de design genérico mas bastante bonito que vive em um mundo que soa como a imaginação de um adolescente criado em apartamento que deseja ser cool: tudo é gothic e dark no mundo abandonado e vazio aonde tudo é repleto de texturas em xadrez.

Soa legal e é fofo: portanto, vende em tempos em que homens buscam garotas 2D fofas e com personalidade [mais para traços de, a serem completados ao gosto do fã] montada sob medida para o cliente, em contraste as vadias e putas da vida real em 3D. E em tempos de internet o rascunho que é o conceito original de BRS – tanto que a principal referência de um canon para a série é o game oficial que é apenas mais um tentáculo da franquia – é desenvolvido principalmente por um fandom numeroso e obcecado pela série.

“Obcecado”, “fandom”, sim, BRS é um paraíso otaku – e como uma animação assim vai estrear justamente no bloco de programação japonesa mais conhecido pelo público ocidental que curte anime e que há quase sete anos antes era criado para atrair pessoas normais, principalmente as jovens adultas [ou josei]?

Precisamos então voltar no tempo para vermos a história do noitaminA ser contada com foco no público-alvo do bloco – que de acordo com o sucesso e as intenções dos produtores foi oscilando até chegarmos ao anúncio de algo como BRS.

Surgimento e primeira fase [josei] do noitaminA

Mesmo antes de um nome, uma proposta e um horário fixo para animação nas madrugadas, a Fuji TV – a exemplo de diversas outras concorrentes como a MBS/TBS de Code Geass e Madoka Magica – já exibia e ajudava a bancar parte do orçamento [através dos comitês de produção tão presentes na animação japonesa] de obras como Haibane Renmei e Samurai Champloo. Faltava mesmo [bem, as outras emissoras conseguiram e conseguem resultados apostando somente em timeslots fixos sem nenhum tipo de embalagem comum às obras exibidas] era o tripé mencionado acima.

Em Abril/2005 o noitaminA [simplesmente animatioN/animação ao contrário], bloco iniciante com o objetivo de trazer animações para um público mais casual – principalmente as mulheres que acabaram de chegar na fase adulta na vida e que são chamadas no Japão de josei – estreou às 0h45 de Quinta para Sexta-Feira com Hachimitsu to Clover [Honey & Clover].

E a escolha do manga de Chika Umino foi acertadíssima e reflete o pensamento dos criadores sobre as obras que deveriam passar ali; um anime que também possa atrair a pessoa comum que está quase indo dormir após um longo dia de trabalho/estudo. Se no Brasil – principalmente nas cidades grandes – o estilo de vida força as pessoas a dormirem cada vez mais tarde [tanto que o horário nobre atual estende-se praticamente até à meia-noite]; imagine em um país cosmopolita e com maior carga de trabalho [e relaxada legislação trabalhista] como o Japão.

Audiência e vendas de discos [na época somente DVDs] estavam razoáveis, mas o fato é que o potencial – principalmente nos discos – era maior que o resultado obtido até o momento; além disso, o mercado de josei é o menor entre as quatro principais demografias existentes no Japão – mais homens leem manga que mulheres [lembrando também que enquanto mulheres compõem boa parte do fandom de obras com demografia masculina como Bleach, o inverso – principalmente em escala – não acontece em algo como Kimi ni Todoke] e mais menores de idade leem que maiores.

E olhando para os outros canais, em 2006 a Nippon TV [ou simplesmente NTV] estava indo muito bem, obrigado; além do hit shoujo NANA, ocorria a estreia de Death Note – outro anime de sucesso que conheceu além de uma ótima audiência, vendas fantásticas de DVD [NANA começou igualmente bem neste quesito, mas conheceu uma queda assustadora [de aproximadamente 80% do primeiro volume ao último]]. Estava na hora de também aqui variar a receita.

Segunda fase [variedade e experimentação] do noitaminA

No começo de 2007, ainda tivemos o outro hit josei do bloco que ainda será lembrado por muitos anos: Nodame Cantabile [tanto que foi o único anime do noitaminA que teve quatro cours exibidos em três temporadas distintas]. Mas entre 2007 e 2008 surgiram as obras que foram por muito tempo as que mais vendeu discos [Mononoke] e a que mais deu audiência [Hakaba Kitarou, sendo que esta mantém o título até hoje] para o noitaminA e que já apontam novas características no tipo de obra animado por este – características estas que vieram a ser realmente dominantes a partir de Higashi no Eden [Abril/2009].

Está certo que demografia não é gênero e nem todo manga para mulheres necessariamente tenha romance como único ou mesmo principal objetivo [Jyu-Oh-Sei, desconhecido representante do bloco ou o bem-sucedido Natsume Yuujinchou da TV Tokyo são provas recentes deste fato]; mas lidar com uma fatia do todo invariavelmente leva a limitações que não existiriam caso esse todo fosse o objeto do trabalho.

E aquelas duas animações do Toei Animation de protagonistas masculinos, temática sobrenatural e leves toques de horror [e muitos de mistério] são obras que só agora poderiam ser animadas pelo bloco, que procura um público-alvo e resultado maior que o anterior. Sendo que vale ressaltar que rara a mudança que extirpe totalmente o comportamento anterior; o estudo “por cima” de História faz parecer que o feudalismo acaba no Século XV, quando chegamos a Idade Moderna – mas tanto a Revolução Francesa [século XVIII] como a Revolução Russa [século XX] surgiram devido a estruturas feudalistas ainda largamente presentes nas sociedades de então. Aplicando-se este princípio em nosso caso, temos Nodame Cantabile Finale [2010], Kuragehime [2010] ou Usagi Drop [2011] sendo representantes daquele tipo de produção.

Claro, tivemos uma perda para um segmento que definha a passos largos [o último shoujo exibido fora das madrugadas japonesas que não é somente uma propaganda de bonecas& no estilo de Pretty Cure [BANDAI] ou Jewel Pet [Sanrio] foi Yumeiro Patissiere entre 2009 e 2010] na animação – um drama  como Ouran High School Host Club faz todo o sentido, talvez até mais sentido que uma animação, quanto ao objetivo de popularizar o original [que o diga Mei-chan to Shitsuji, um amplo sucesso com atores de carne e osso que fez o manga figurar entre os mais vendidos no Japão em 2009]; mas de outra forma talvez nunca teríamos um Higashi no Eden [2009] ou um Yojou-han Shinwa Taikei [2010] sendo exibido.

Relevante usar estes dois animes, absolutos sucessos de crítica [e em certo sentido, de público, dado a quantidade de discos vendidos] como exemplo, porque tem comportamentos distintos quanto serem acessíveis, principalmente ao público geral. Enquanto Higashi no Eden tem o espírito de um filme ocidental, sendo que o fato de ser feito no Japão faz com que o equílibrio entre as influências americanas e europeias seja mantido, enquanto o faro de um Kenji Kamiyama [Ghost in the Shell: Stand Alone Complex; Seirei no Moribito] faz com que a obra tenha um feeling próprio [mas não japonês] e seja intrigante e ao mesmo tempo acessível [daí a alta e constante audiência].

Já Masaaki Yuasa [Mind Game, Kemonozume, Kaiba] faz um anime bastante original em sua execução, mas com uma combinação explosiva de character design cartunesco e fluxo de diálogos alucinante [particularmente o primeiro episódio, um pesadelo para qualquer um que tente assistir com legendas] que acaba afastando o grande público [além dos otakus atuais, obcecados por uma “elegância” no traço que leva a supervalorização de um Mel Kishida [Sora no Woto, Hanasaku Iroha, Kami-sama no Memo-chou] e o desprezo de algo como Tatami Galaxy – o título alternativo em inglês] – assim afugentou [na verdade, o fenômeno começa com o pirado Kuuchuu Buranko [Trapeze] de Kenji Nakamura] a audiência do bloco, sendo que os resultados da venda de discos e merchandising continuaram oscilando entre razoáveis e péssimos.

Em tempo de crise financeira [o Japão, assim como outros países desenvolvidos, não teve qualquer crescimento desde 2008] e com uma indústria cada vez mais fechada e focada nos fãs hardcore, não seria a hora de tentar angariar de verdade esse público para o qual a fronteira entre o hobby e o lifestyle é no mínimo obscura? E assim começa um movimento que culminará em uma nova fase para o bloco.

Terceira fase [aproximação com o otaku] do noitaminA

Em Janeiro/11, algum tempo após a constatação da queda relatada acima, estreia Fractale, anime dirigido pelo conhecido Yutaka Yamamoto [Kannagi, BLACK ROCK SHOOTER] e que foi mais uma tentativa fracassada [leia o review mais completo a respeito AQUI] de se fazer algo parecido com os filmes da primeira fase de Hayao Miyazaki.

Porém diferentemente de tantos outros animes que buscaram emular filmes como Nausicaa e Laputa,  – que são principalmente obras feitas para construir a respeitabilidade dos responsáveis – Fractale deixa bem claro em seu encerramento sobre qual personagem é o caminho para buscar entender mais que a história, e sim o objetivo deste anime: Nessa [pronuncia-se nêssa e não néssa].

Nessa é – usando uma definição que evita spoilers da série – uma consciência artificial feita há muitos anos pelo Sistema Fractale; mais que uma consciência, é um poço de moe. Sim, Fractale tenta – assim como o similar na ambição, na ambientação [apesar das influências claramente diferentes] e no fracasso comercial Sora no Woto – vender-se como uma fantasia futurística [é injusto colocarmos a tag de ficção científica a um anime no qual alguns conceitos potencialmente interessantes ficaram com cara de jogados] no qual a fofura [vale uma digressão o fato do termo japonês kawaii não ter uma tradução em língua portuguesa que chegue perto do sentido que a palavra tem no original – nem ao menos o apenas razoável cute dos ingleses e americanos] é sim um ponto primordial de venda.

E ao contrário de uma Sheeta ou Nausicaa, criações de Miyazaki que foram corrompidas pelos fãs mas que no original não dão brecha para as fantasias de parcela do fandom, Nessa é feita pensando na popularidade – e os doujinshis de uma Comic Market são consequência óbvia e esperada pelos criadores de qualquer série que foque nos otakus.

Mas alguém pode alegar que – mesmo de forma fracassada – Fractale ainda tentou misturar outras coisas no objeto de culto de quem assiste animes pelas menores de idade. Mas no cour seguinte veio Ano Hi Mita Hana no Namae o Bokutachi wa Mada Shiranai – que poderia muito bem ser uma Visual Novel [como notado já na resenha do Primeiro Episódio AQUI] – com o bloco dando mais um passo ao caminho do otaku ao ser um drama feito na medida para provocar lágrimas de um público primordialmente adulto [ao menos na idade] e masculino [o foco são nas personagens femininas, e a construção dos personagens masculinos é bem mais fraca – mais no artigo final sobre Ano Hana, AQUI].

Produtora, média de vendas por disco, objetivo principal – em Ano Hana, muita coisa lembra o hit de 2010 Angel Beats!. E fez sucesso, ao menos na calorosa recepção do público hardcore e nas vendas de discos – dobrando o recorde de Mononoke.

Um Futuro Duvidoso…

Assim, o caminho está pavimentado para um anúncio como BLACK ROCK SHOOTER, a estrear em Janeiro/2012 – aonde cabe um Fractale ou um Ano Hana há espaço para um BRS. Ao menos por enquanto, provavelmente esse tipo de obra deve coexistir com as obras provindas dos dois outros períodos – mas, como sempre, anime é negócio e somente são produzidas obras caso haja alguma esperança de retorno para os realizadores.

Assim, vale notar casos como o de Hourou Musuko, exibido em Janeiro/2011 logo após o citado Fractale. Muito bonito o esforço de animar uma obra que tema sobre confusão de gênero e transsexualidade em um contexto de coming of age [amadurecimento, especificamente o tornar-se um adulto], mas qual o público-alvo para uma obra assim? Apesar do reconhecimento da crítica [entrou, por exemplo, no Top 20 do Animage Grand Prix 2010/2011], a audiência foi fraca e a venda de discos, mais ainda; nem as vendas do manga foram afetadas.

Não teria sido melhor ter seguido o exemplo anterior do bloco e ter escolhido uma obra como Kimi ni Todoke ou Chihayafuru, animadas pela Nippon TV para exibição em suas madrugadas? Mangas vencedores com propostas vencedoras e com potencial de atingir um público maior que um Hourou Musuko; claro que sempre é bom que uma obra diferente como este ou um Kuuchuu Buranko seja animado, mas de que adianta uma obra feita para poucos se a consequência a médio e longo prazo é justamente séries feitas para a fatia fidelizada que assistiria uma obra como BRS tanto na Fuji TV como em canais desconhecidos a exemplo dos que exibiram um Ore no Imouto ou um Steins;Gate, obras feitas – inclusive no enredo – sob medida para estes fãs?

Afinal, como um simples bloco de programação tornou-se tão importante? […]

8 thoughts on “A Otakização do noitaminA”

  1. pessoalmente eu prefiro mais uns estilo experimentação. coisas tipo trapeze e tatami galaxy são coisas que me prendem.

    acabei de ver mononoke a pouco tempo e adorei tb.

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