Lupin Sansei, Cagliostro no Shiro

Algo primordial mas que é menos citado do que deveria sobre a carreira de Hayao Miyazaki é o papel que a direção da série de TV de Lupin Sansei [ou Lupin the III, no Ocidente] tem nesta. Após alguns projetos iniciais [com destaque para Horus, resenhado por Panina Manina AQUI] bem-sucedidos, ele – juntamente com Isao Takahata, co-diretor de Horus e que seria ao longo da carreira seu maior parceiro – assume perto do episódio 10 a direção desta série de TV que adapta o manga que retrata diversas aventuras estrelando o neto do famoso ladrão Arsène Lupin na visão do mangaka Monkey Punch, juntamente com um time de personagens incrivelmente carismáticos, do confiável parceiro Jigen ao incansável antagonista Zenigata [que representa o lado da justiça nesta série que dá o ponto de vista do ladrão]. Em 23 episódios exibidos entre 1970 e 1971 tivemos o nascimento de um clássico, que anos depois seria retomado em uma série maior, de 155 episódios entre 1977 e 1980, de maior sucesso popular.

Lupin, calmo no alto de seu Fiat 500.

O sucesso combinado destas até então as únicas séries estrelando o anti-herói [na versão miyazakiana, sempre vestindo sua jaqueta verde] começou a render versões cinematográficas. Enquanto isso, em 1978 Hayao Miyazaki finalmente havia emplacado seu primeiro projeto plenamente autoral, uma adaptação livre da obra “The Incredible Tide” chamada Mirai Shounen Conan [Garoto do Futuro Conan] sendo exibida com sucesso no conhecido bloco de animação da NHK World Masterpiece Theater, onde inúmeras obras da literatura mundial foram adaptadas para animação [o que era uma tendência forte no Japão; o Pequeno Príncipe que passou no SBT foi uma produção da concorrente TBS, por exemplo].

Assim, Miyazaki é convidado para roteirizar e dirigir o filme da já incipiente franquia a ser lançado em 1979 – assim, deixa completamente nas mãos de Takahata o mais novo projeto daquele bloco, Akage no Anne [literalmente, Anne, a Ruiva; mas conhecido pelo título do original canadense Anne of Green Gables] para assumir seu primeiro projeto solo para cinema, o que seria mais um dos longos passos que sua ascendente carreira demandava. Temos como resultado Lupin Sansei, Cagliostro no Shiro [Lupin Terceiro, o Castelo de Cagliostro], um filme aonde Miyazaki pode estabelecer de forma mais firme sua marca em uma indústria ainda um tanto incipiente, mas em fase de consolidação.

O primeiro encontro entre Lupin e a doce Clarisse.

O começo do filme é marcante em demonstrar qual será o tom dos quase cem minutos de duração deste – após [mais] um assalto bem-sucedido a um cassino em Mônaco, Lupin e Jigen descobrem que o dinheiro roubado é falso, o famoso Goat Money [Dinheiro Bode, em referência a um dos símbolos da família]. Lupin então decide qual será seu próximo trabalho, mas antes de contar ao espectador qual é, temos a abertura, importante por dois motivos: marca de forma clara a transição ocorrida, tanto para aclimatar quem assiste ao ambiente do filme quanto para Lupin, que está sendo de seu ambiente tradicional para entrar em outro no qual terá sua personalidade ajustada à visão do diretor. Cagliostro é até criticado por certa parcela dos fãs da série por não ser fiel ao feeling desta e pelos personagens terem suas personalidades modificadas – mas a abertura [e posteriormente o encerramento] deixam claro que é esta a intenção da obra.

No menor país do mundo – cujo castelo dá o nome do filme –, localizado ao Sul da Europa, Lupin e Jigen vão investigar a misteriosa e arriscada origem do tal dinheiro falso. Enquanto consertam o pneu furado do Fiat 500 amarelo da dupla, uma perseguição entre uma jovem vestida de noiva em um carro e diversos capangas de terno em outro chama a atenção da dupla, que interfere. Após uma bela cena de ação, Lupin descobre que a jovem chama-se Clarisse, princesa do pequeno ducado que volta do colégio interno para casar com o conde e unificar suas famílias, que dominam o lugar desde tempos imemoriais. E ela foge, deixando uma valiosa joia para trás, o que interessa ainda mais seu interesse neste condado e seus segredos.

Zenigata, o lado da lei.

Mas a joia simboliza Clarisse, e o foco do filme é salvar a pura princesa das garras do maligno conde – e ao contrário de outras obras de Miyazaki, anteriores e posteriores, estes dois personagens são definidos claramente como sendo representantes do bem e do mal. Como os coadjuvantes aparecem em pequenas doses e são contrapartes fieis dos existentes na TV, a complexidade quanto aos personagens fica mesmo por conta de Lupin. Um motivo clássico mas eficaz para diminuir o foco em Lupin ser, afinal, um ladrão, é que aqui este quer acertar contas com o passado – é revelado que no início de sua carreira ele tentou desvendar o mistério do dinheiro falso, sem sucesso, e por isso ele está mais sério de que costume. No geral, Cagliostro no Shiro quer ser um filme para toda a família [principalmente a japonesa no final da década de 1970, longe do politicamente correto de nossos tempos].

Clarisse e o malvado Conde de Cagliostro.

E para ser para toda a família temos aqui uma aventura a todo vapor, onde a ação praticamente é ininterrupta e a criatividade de Miyazaki para dirigir um filme de ação é testada de forma intensa. Até pelo fato de ser uma franquia preestabelecida e que acontece no mundo real, não há muita liberdade para o uso intensivo de ação aérea como em filmes futuros do diretor – mas isso é um fator positivo, afinal é um filme muito equilibrado neste ponto – há muita ação por terra, a pé ou de carro, e alguns trechos temos cenas por ar e por água. Tudo isso ao melhor estilo Lupin, utilizando da simplicidade para fazer ações irreais parecem corriqueiras. Outro destaque é para a abordagem do pequeno país ao longo do filme – diversos cenários são utilizados durante a obra, principalmente o[s] castelo[s] que dá o nome ao filme, mas também a cidade próxima, o campo, as montanhas, o rio que separa o castelo do resto do país – sem que isto se torne forçado ou mesmo cansativo. Os personagens simplesmente vão passando pelos lugares devido as necessidades de sua jornada, de forma natural.

Ação e comédia se misturam lindamente nesta cena - e no filme.

Assim, o grande mérito de Lupin Sansei: Cagliostro no Shiro é ser ótimo no que se propõe, que é ser um filme de uma franquia baseada em personagens carismáticos vivendo mais uma aventura em um filme recheado de ação [também vale mencionar a comédia, principalmente de tom pastelão, que é uma das marcas da franquiaa – aqui executada de forma que o tom sexual, principalmente entre Lupin e a presença feminina de Fujiko seria quase que retirada – afinal, o filme tem sua protagonista cujo nome é Clarisse], mesmo que ainda executada da maneira tradicional japonesa, sempre aproveitando atalhos para economizar dinheiro animando o mínimo necessário. Mesmo não tendo o padrão de qualidade imposto depois da fundação do Studio Ghibli [inclusive com as excelentes trilhas de Joe Hisashi], o filme é plenamente satisfatório na animação [mesmo considerando o óbvio fato de ser uma produção cinematográfica] e o traço não compromete – mesmo este talvez não esteticamente agradável para o olho de quarenta anos depois da criação do manga. Os elementos em geral são simples, mas alguns cenários podem surpreender o espectador com poucas expectativas.

Após essa longa aventura cheia de reviravoltas e momentos marcantes que nem aqui vale ficar contando a exaustão, inclusive com uma bela surpresa guardada para após o clímax, chega a hora da despedida. Todas as pontas do roteiro satisfatoriamente resolvidas e temos que, juntamente com os personagens fixos da franquia, sair da sala de cinema, representada por Cagliostro. E aqui temos um outro clímax, o do romance entre Lupin e Clarisse desenvolvido durante todo o filme. Esta está perdidamente apaixonada por nosso anti-heroi, amenizado também por este amor – e se oferece para ir com Lupin em sua eterna aventura. Mas o costumeiro galanteador aqui prefere deixar esta menina pura [o vestido de noiva remete a isto] viver sua vida, que afinal está só começando.

Antes de ir embora, Lupin ainda fala que se Clarisse precisar ele voltará para ajudá-la – mas ela sabe que a aventura acaba ali, e como Zenigata fala em seguida, ocorreu um grande, um terrível roubo: o do coração da princesa pelo ladrão. E enquanto surge a cidade grande ao fundo, acompanhado do crédito “Fim”, percebemos que nós que tivemos nosso coração roubado por 99 minutos nesta aventura concebida por Hayao Miyazaki.

A despedida melancólica que é um clássico dos animes.

Qwerty: Este artigo é o primeiro de vários que são publicados aqui como versão definitiva de minha trajetória pelo Subete Animes; principalmente revisados onde o leitor pouco vê [gramática, ortografia e – afinal, estamos na internet – HTML] e com imagens maiores e com legendas como a proposta moderna daqui se propõe a fazer, eles só tem a agregar à seu novo Porto Seguro para Animes. Assim, toda quarta-feira agora é dia de usar a tag Subete Classics para trazer pra você – com melhorias – artigos que muitos não tiveram a chance de ler por qualquer motivo. Até a próxima!

FIM; eles voltam para seu mundo, nós para o nosso.

O sucesso combinado destas até então as únicas séries estrelando […]

3 thoughts on “Lupin Sansei, Cagliostro no Shiro”

  1. Adorei esse detalhe que você pegou da abertura como sinal da licença poética do Miyazaki com o personagem. Realmente, o Lupin III desse filme é “o Lupin do Miyazaki” (o mangá é MUITO mais agressivo, do pouco que vi), e saber que o diretor nos diz que ele sabe disso, e que não está mudando ou distorcendo, apenas ‘brincando’ com ele, é até um, digamos, alívio.

    Você sabe que eu sou fã de O Castelo de Cagliostro (eu digo, inclusive, que é o melhor filme de animação que EU já vi – sim, pode até ser exagero, mas é assim que funciona pra mim), e esse artigo está à altura.
    Um dia faremos um VQ sobre, e espero que também esteja à altura de O Castelo de Cagliostro.

    (alguém sabe se o DVD que saiu no Brasil vale a pena?)

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