A tolerância à fantasia

Yo!

Cansei de tentar arrumar o PC e vou mandar assim mesmo. Bora ver!

NOTA: Antes de qualquer coisa, vou avisar: meu PC deu um pau doido, troquei peças e ainda assim não arrumou e por isso eu tô todo esse tempo sem postar, mais por causa das imagens que acompanham, já que o notebook que eu tô usando não roda nem o browser sem arriar. Mas como já estava na hora, vou voltar a postar sem imagens ou sem editar elas e quando meu PC FXstation2005 Frankenstein Edition voltar à vida, eu arrumo tudo.

 

ATENÇÃO!! O texto é longo e eu sugiro você colocar ele nos seus favoritos para ler depois, com calma.

 

Engraçado que minha “breve” notinha sobre a polêmica de Miyazaki e os otakus tenha gerado um interesse tão grande apesar das pessoas ainda não terem entendido o que eu escrevi. Ou rolou um “não li, não lerei” forte. Não li, mas comentei.

HAYAO MIYAZAKI, OTAKU E MAL-ENTENDIDOS

Prepara pra cagação de regra!

Conceito

O grande problema foi o conceito de afastamento da realidade que eu citei. Basicamente (se você quiser ler só isso), um escritor precisa saber dosar a quantidade de elementos que distanciam sua história da realidade dependendo do público que pretende buscar.

Por exemplo, uma criança ainda tem pouca noção de realidade, por isso ela aceitaria uma história de um coelho de dois metros de altura que é detetive de brinquedos em uma cidade feita de jujubas. O elo de realidade dela são os elementos. O coelho, o trabalho de detetive e as jujubas. Ela dificilmente fará elos entre as coisas para definir que isso é impossível.

Já um adolescente poderia achar a cidade de jujubas uma coisa inaceitável, pois ela ficaria nojenta em uma semana. E um adulto não aceitaria a ideia de um coelho ser gigantesco e poder andar e falar para exercer seu trabalho de detetive. Na verdade, pra um adulto, muitas das histórias das crianças são simplesmente fantasiosas demais para aceitarmos dentro do conhecimento que adquirimos, seja com a vivência, seja com a leitura e a pesquisa ou simplesmente pelo senso comum, que adquirimos absorvendo a opinião das pessoas com quem convivemos.

Se a história arranha o que o leitor (um leitor, já que a experiência de leitura é completamente individual) acredita ser a realidade, ele não consegue entrar na história e consequentemente, vai ver os acontecimentos dela de uma forma mais distante e menos imersiva, o que acaba sendo frustrante.

Realidade x fantasia

Mas existem possibilidades para viabilizar a fantasia dentro dos conceitos de um adulto. Voltando ao nosso coelho, se explicarmos que ele é um homem comum, que por algum motivo (mutação? maldição?) se tornou um coelho gigante, aceitaríamos com um pouco mais de facilidade. É o artifício de Porco Rosso, animação de Hayao Miyazaki que tem um porco piloto em um mundo completamente realista.

A maior parte dos adultos com alguma afinidade com qualquer entretenimento de massa acaba adquirindo maior aceitação à fantasia, desde que ele possa explicar isso de alguma forma. Toda a ficção científica se baseia em criar uma fantasia e explicar ela dentro de conceitos científicos que ainda não dominamos ou que não passam de teorias e por isso, estão mais próximos da fantasia do que da realidade, como o túnel de minhoca ou a viagem interestelar.

Exatamente por isso, podemos dizer que a ignorância talvez seja a benção de quem quer ser feliz com a fantasia. Conhecimento traz dúvidas, sabedoria expande nosso mundo ao mesmo tempo que reduz nossa tolerância ao fantástico. Sim, se você quer ler todos os seus livros e mangás para sempre, o caminho talvez seja não estudar a realidade, o resultado real da ciência, a medicina, até mesmo a política e quem sabe, a psicologia. Porque você começa a enxergar com um raio x de realidade um mundo onde todos deveriam abstrair. De qualquer forma, quanto mais você estuda, menos erros você tolera. Da mesma forma que um desenhista não toleraria erros de arte que uma pessoa comum não nota, um roteirista não tolera erros no desenvolvimento que a maioria não nota, um físico não toleraria uma explicação furada sobre como o personagem consegue voar alterando o campo gravitacional da Terra.

O entretenimento se adaptou a isso diversas vezes durante a história. Nos EUA, a década de sessenta viu seus leitores de quadrinhos crescerem de crianças pequenas para jovens adolescentes. A faixa mais gorda dos leitores de quadrinhos (sem analogias) deixava de aceitar as fantasias de Batman e Superman e pedia um pouco mais de proximidade. A Marvel trouxe heróis mais próximos dos leitores, com um garoto picado por uma aranha, mas que era como qualquer leitor.

No cinema, a onda de filmes de terror gravados com câmeras na mão ou câmeras de segurança ajudou na imersão do público em histórias de fantasma, cada vez mais desacreditadas. Um artifício técnico que cria um elo de realidade que só uma geração que se acostumou a gravar tudo com câmeras, cada dia mais cotidianas, pode ter.

Nos anos setenta, o Japão se viu em uma onde de protestos que pediam modernização política e social. A realidade martelada todos os dias na cara dos jovens e o crescimento das crianças do baby boom pós-segunda guerra mundial acabou afetando as vendas dos mangás, que pediam temas que as representassem melhor.

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A representação máxima dessa época é um movimento chamado de Gekigá, que teve em Takao Saito (autor de Golgo 13) seu maior expoente e mais poderoso articulista. O Gekigá cuspia em sua geração anterior, o mangá. Enquanto o mangá, como palavra, acentua o lado caricato, fantasioso, o Gekigá é o desenho dramático, é a arte da realidade, onde a fantasia se atém aos fatos e todo o resto é o mais próximo da realidade possível.

Na ficção científica se criou até um termo para a vertente que atende leitores mais exigentes, a ficção científica hard, que se vale de teorias ou fatos científicos reais. Mas ao mesmo tempo em que ela atende leitores com um nível maior de exigência para abstração de realidade, também pode afastar leitores que não conhecem a ciência por ser exatamente uma leitura pesada.

Sub-gêneros e regras pré-escritas

O excesso de explicação acabou se tornando uma exigência da demanda por fantasia, onde devemos explicar tudo que fazemos na trama. Mas pelo bem da fluência narrativa, os escritores passaram a pensar em alternativas.

Uma forma de fugir dessas explicações longas acaba sendo se rotular dentro de sub gêneros. Os gêneros primários são simples, nos avisam que uma história nos fará rir, chorar, nos emocionar ou nos empolgar. Os sub gêneros acabam servindo mais como manuais de abstração de realidade.

Assim, quando criamos uma ficção científica steam punk, estamos dizendo ao nosso público que nossa história usará da licença poética comum ao gênero steam punk para se explicar, e portanto podemos nos dar ao luxo de não explicar o cenário dominado por máquinas à vapor. O mesmo acontece com os mechas (lê-se “meka”, de mechanics) no Japão. Só significa que não vamos necessariamente explicar porque as pessoas usam robôs ao invés de tanques e jatos armados com bombas, muito mais eficazes.

Esse tipo de abstração da realidade não se limita apenas à noções de ciência. Também existem os gêneros que exigem um certo grau de abstração de realidade quanto ao contato humano. Abstração de realidade social. Isso acontece em muitos tipos de história, mais até do que se imagina. Por exemplo, um filme pornográfico, onde o sexo é o ápice, a relação entre as personagens é irrelevante. (aliás, a indústria pornográfica tem diversos recursos de imersão do expectador, mas fica pra outro dia)

Da mesma forma, mangás onde o foco vai para ações, como no yaoi (na ideia de fantasia feminina), ecchi, hentai (e até mesmo mangás de ação, por que não?) muitas vezes devemos abstrair o fato de personagens não agirem como seres humanos mundanos, como a média da humanidade. Podemos aceitar com mais facilidade as soluções que caem do céu para que a história entregue o que esperamos, seja isso uma cena sensual, uma insinuação erótica ou até mesmo o Seiya salvando Athena com o poder da amizade.

O moe (leia mo-ê) é parte disso. Precisamos fingir que aceitamos a personalidade dessas personagens (alguns até aceitam de verdade!) e que as relações e a interação entre elas é aceitável. Mas ao mesmo tempo em que não temos tantos especialistas em ciência, temos muita gente com experiência social (por favor, que eu não esteja mentindo!).  Abstrair esse tipo de fantasia acaba sendo mais difícil quando não aceitamos a existência de pessoas desse tipo e de relações mágicas.

Cultura

Até mesmo a origem da história acaba sendo um fator de abstração que limita uma obra. Por exemplo, uma história sobre um samurai na Era Meiji pode fazer muito sentido para um japonês ou para qualquer pessoa que conheça a cultura japonesa, mas também pode ser um impeditivo para alguém que sequer sabe onde o Japão está no Mapa Mundi. Para  essas pessoas, o Japão feudal é tão fantasioso quanto a Terra do Nunca.

O fator cultural também acaba sendo um grande obstáculo para a fantasia e que nos deixa distantes até mesmo de obras primas da literatura mundial, simplesmente porque não somos familiares à conceitos sociais da China, da Rússia ou da Irlanda. Ou até do Brasil, não aceitamos muitas histórias sobre nossa própria cultura.

E temos o tempo como mais um fator bem comum para nos afastar de histórias. Seja por conceitos sociais da época (por exemplo, a figura do negro em qualquer obra anterior à luta racial, até mesmo em obras onde isso é tratado de forma tão comum que nem é discutida, como em Tintin ou nos mangás de Osamu Tezuka) ou ainda pelas diferenças com a língua falada na época, roupas, gestos, cultura… A própria execução do material afeta, já que um livro escrito no século dezoito usa uma gramática e linguagem da época e um filme do Chaplin usa recursos e técnicas que podem não ter acompanhado o tempo, mas ambos podem ser incríveis.

Para o mangá, ainda existe um fator a mais, que é o conjunto de regras de abstração do mangá. Dentro desse conceito, podemos dizer que o mangá, como gênero, é o conjunto de regras de abstração da realidade que é usado normalmente nesse tipo de história. Aceitar as caretas, a anatomia de muitos personagens, recursos visuais, a realidade aumentada de alguns mangás, é demais para o senso de realidade da maior parte do público ocidental. Por isso, muitas vezes, as empresas trabalham em localizações de material.

A localização seria retirar tudo que seu público não aceite ou que ele possa ter dificuldade de aceitar. Nomes estranhos, objetos estranhos, caretas, danças, expressões, tudo recebe um trato para ser aceito. Às vezes, acaba sendo melhor refazer a obra, fazer um remake. Algumas vezes, isso funciona. Outras, afasta ainda mais o público. Porque no final das contas, é como colocar um sobretudo em um gorila e querer andar com ele tranquilo na cidade.

O que tem acontecido muito hoje em dia é a própria localização de material na fonte. Empresas japonesas que evitam os cacoetes japoneses em suas obras para que o material tenha maior penetração no ocidente (sem analogias). Existe até mesmo um planejamento para se mudar o sentido de leitura para o ocidental e facilitar a exportação de seu material e o inverso também, porque os japoneses médios costumam ter problemas em ler até mesmo publicações locais que tem escrita no sentido ocidental, o yoko moji (escrita na horizontal) e isso aceleraria um processo de internacionalização do país.

Otaku

Ao mesmo tempo em que há um esforço em se conseguir um público mais amplo para o mangá, também existe um movimento que tenta se manter seguro com um único público. Esse público desconhece a realidade e até mesmo tem aversão pelo que conhece dela, e a fantasia acaba sendo reconfortante. Eles aceitam a falta de lógica pois muitas vezes, desejam a falta de lógica na realidade.

Chame de otaku, nerd… esse público é fiel e conseguiu poder em meio à crise de mercado. Muitas vezes, não é nem a ignorância que afeta o senso de realidade deles, mas um desejo de escapismo, de fugir da realidade.  Para alguns autores, o nicho de público dos otakus é até inspirador, porque é como você ter um público muito mais receptivo do que o normal, aceitando o que normalmente seria mal visto. Por exemplo, o próprio conjunto da arte acaba sendo muito mais amplo para um otaku do que para um público comum. A anatomia, as proporções, a física, tudo pode ser relevado se o resultado levar uma satisfação fantasiosa.

Dependendo do grau de abstração do receptor otaku, você pode ir de desenhar olhos grandes até recriar toda a realidade como uma enorme caricatura onde nada precisa realmente ser real, tudo em nome da satisfação. Nem todo otaku é alienado, mas temos que aceitar que em graus elevados, existem fãs de mangá, de quadrinho, de cinema, que simplesmente desconhece a realidade e viveu sua vida por janelas.

Criadores

Hayao Miyazaki culpou os criadores pela estagnação do mercado em materiais para otaku. Na verdade, naquela declaração, ele culpou os criadores por sua inaptidão em fazer animações como as dele. Miyazaki explica a penetração de seus filmes em seu extremo detalhismo, que prende sua fantasia à realidade por experiência. As pessoas ao viverem, veem pessoas, notam movimentos, notam reações, mas muitas vezes, nem sequer nos damos conta e teríamos dificuldade em reproduzir se nos pedissem. Exige um esforço, claro. Por isso ele é especial.

Esse esforço está em prestar atenção dobrada nas pessoas. Ver e enxergar o que está por trás, entender, como se entende a mecânica de um carro para poder criar um outro carro. Ou estudar um artista para poder reproduzir um estilo de arte. Se interessar mesmo por pessoas, pois só conseguimos esse grau de foco em qualquer coisa quando realmente gostamos disso. E para esses criadores otakus, as pessoas são menos importante do que seus mangás favoritos.

É inegável que hoje em dia, praticamente todo autor de mangá ou quadrinhos em geral saiu do fandom, é um leitor habitual de quadrinhos. Por isso, conhece e aceita as abstrações da realidade. E repassa isso para seu público. Mas isso vai se tornando cada vez mais um código interno entre entendedores. E se seus leitores não estiverem dispostos a se aventurar em sua fantasia, você perde esse alcance.

Miyazaki, entre seus diversos talentos, tem um alcance magnético. Suas histórias são amplas o bastante para chegar a qualquer público e cativar mesmo sem ter atores e até mesmo em movimentos que fogem da realidade. Porque muitas vezes, esse elo com a realidade não é o realismo extremo, mas saber traduzir com perfeição como seria se a realidade fosse fantástica. E, pra muitas pessoas, a realidade seria a fantasia de Hayao Miyazaki.

Preconceito e ignorância

Entendendo o conceito, descobrimos que o que limita a fantasia é a realidade. Quando somos crianças, somos completamente simpáticos à fantasia e nossos critérios para gostar ou não de uma história passa apenas pela intensidade das emoções que recebemos dela e se aceitamos isso bem ou não. Com o passar da areia na ampulheta do tempo, nós lemos mais, vivemos mais e nos tornamos cínicos até. Aprendemos um tal de senso comum, que nos nivela como seres humanos. O senso comum muda com o passar do tempo, incluindo e excluindo ideias e conceitos que aceitamos como realidade, como verdades, mesmo que seja sem consciência disso.

Dentro desse senso comum, desenvolvemos o preconceito com o que não está dentro desse conjunto de coisas que aceitamos. De certa forma, o preconceito racial, religioso, tudo isso se baseia em fantasias. Por exemplo, a fantasia de que negros poderiam ser tão humanos quanto os brancos precisou de muita luta para que aceitássemos como realidade, a de que os gays são normais ainda beira na fantasia, mas somente dentro desse tal de senso comum. Cientificamente, já não resta dúvidas em ambos os casos. Resta admitirmos em nossa percepção.

A realidade é imutável e não é afetada por fantasias. Por isso que a ciência nos afasta da fantasia. Quando aprendemos mais, estudamos mais, vemos o mundo por cima do senso comum e podemos nos desprender de conceitos fantasiosos, e de verdades impostas. É o “saber o que é certo e errado”. Saber. Por isso que excluímos histórias onde a realidade não respeita o nosso conceito pessoal de realidade ou o nosso limite de abstração que adquirimos com o hábito.

Essa ideia não é nova e era até pregada pelo Gekigá de Saito. A fantasia, para Saito, era danosa e nos fazia acreditar em conceitos que atrapalhavam o desenvolvimento social. Não era simplesmente uma birra infantil contra a fantasia da geração anterior, mas um estudo de como a fantasia emburrece as pessoas e as controla.

Verdade seja dita, a fantasia, na forma de filmes, animes, mangás, livros ou o que seja, costuma ser uma ferramenta do senso comum exatamente por causa do conceito de abstração de realidade. Para uma fantasia ser aceita, precisa parecer realidade para o senso comum do público e por isso é difícil tratar de temas polêmicos com naturalidade enquanto fala de fantasia. Essa busca pelo público cria uma propaganda do comum, espalhando “aquilo que queremos ver”. Mas ao mesmo tempo, pode ser usado como arma de mudança.

Afinal, é um choque vermos um casal gay se beijar no último capítulo de uma novela hoje, em 2014, mas aposto que isso será parte do senso comum com o passar dos anos, assim como não comentamos com furor o beijo de um negro e uma branca na mesma novela ou mesmo uma cena de sexo na TV aberta ou mesmo um beijo, coisa que menos de 50 anos atrás era um escândalo.

Isso é até uma ferramenta de texto, se reparar, eu mesmo uso muito isso ao passar uma ideia e depois uma analogia com alguma ideia mais fácil de visualizar, como o exemplo da novela no parágrafo anterior. Assim, fica mais fácil aceitar o texto.

(acho que ninguém leu até aqui.)

Sonhador

Mas então a fantasia cria preconceitos e destrói o senso de realidade? Sim, eu acho. Mas ao mesmo tempo que nossas fantasias podem estar dentro do nosso senso de realidade e nos afastar da realidade única e imutável, ela pode estar dentro do nosso senso de abstração e ser simplesmente um canal de entretenimento.

Nós excluímos fantasias de nossas vidas porque não aceitamos ela como realidade e não conseguímos aceitar elas em nossa abstração de realidade. Não ficou no time titular e não conseguiu sequer ficar no banco de reservas de nosso senso de realidade, nós negamos. E com isso, passamos a eliminar de nossa biblioteca pessoal algumas grandes obras e histórias incríveis que não lemos por… preconceito.

Se a realidade é uma e imutável e nós só estamos aprendendo mais sobre ela dia após dia, o ideal seria termos um senso de realidade único e imutável, mas com a consciência de que estamos longe de conhecer sua totalidade. E com um banco de reservas amplo. Precisamos de um campo muito maior para a abstração jogar, precisamos aceitar a fantasia como fantasia e deixar rolar, podendo jogar cada vez mais distante da realidade que aceitamos sem esquecer que estamos no campo das fantasias. É aprender que não precisamos participar sempre pra nos divertir junto.

Isso inclui entender que um país é diferente do país em que vivemos, de que até mesmo conceitos básicos de nossa cultura podem ser muito diferentes. E, claro, que pessoas não são iguais e tomam decisões estranhas em momentos estranhos. Isso pode até criar um interesse em saber mais sobre essas culturas, sobre essas pessoas, sobre ideias. E enquanto enriquecemos nossa fantasia, enriquecemos nossa realidade.

Talvez, de certo modo, ser otaku e aceitar novas possibilidades seja algo importante até. Não exatamente otaku, mas ser um sonhador, acreditar em algumas fantasias e não se prender ao chão firme sempre. Afinal, recordes são quebrados por pessoas que não acreditam em limites, invenções são criadas por quem não se limita ao que já existe e a inspiração não é nada além de um sonho motivador.

Miyazaki não é um realista e se fosse pra colocar ele em algum dos lados, ele não seria do Gekigá, abraçaria sem dúvidas o mangá fantasioso. Porque observar pessoas não foi o que ele fez para prender seus pés na realidade, mas sim para criar a âncora que mantém sua fantasia flutuante ao alcance até das pessoas que não poderiam chegar até lá. É o exemplo a que remete a metáfora. Tudo pode ser fantasia, menos as ações dos personagens, porque enquanto eles forem humanos, não há senso de realidade que diga o contrário.

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PS: Não sou especialista de nada, ok?

19 ideias sobre “A tolerância à fantasia”

  1. É a segunda vez que leio esse texto e certamente lerei de novo algum dia. Infelizmente sou desses que fica muito em casa e o referencial de vida vem de obras de ficção. Gostaria de ser autor, mais pra isso primeiro tenho que desbravar o mundo.

    1. Valeu, Gregório! Pode voltar sempre!

      Pra ser autor, Gregório, tem vários jeitos, nenhum caminho é o certo pra todo mundo. Mas se você realmente acha que te falta experiência de vida, vai aos poucos. Sai de casa, traça algumas metas simples, como conversar casualmente com alguém, fazer novos amigos de lugar nenhum, descobrir pessoas que ninguém mais conhece… Acredite, todo mundo, criança ou velho, pobre ou rico, burro ou sábio, todos têm uma história e uma lição pra você se tornar alguém melhor. Já vi mais sabedoria em um mendigo do que em um professor.

  2. Mais uma coisa que eu quis escrever aqui antes e que acabei me esquecendo…
    Quando li o artigo, me veio à mente um livro que recomendo a todos: “O Videota”, de Jerzy Kozinski (o livro ganhou adaptação para cinema, em 1979, com o título de Muito Além do Jardim).

  3. Parabéns pelo ótimo (e gigantesco XP) texto.
    Lendo o texto lembrei de algo que exemplifica bem como algumas coisas são melhores aceitas quando a obra é uma fantasia ou ficção. O primeiro beijo inter-racial da tevê americana é chamado de “Plato´s Stepchildren”, por causa do nome do episódio de Star Trek onde ocorreu.
    O episódio foi ao ar em 1968 e o beijo só foi aceito pela maioria por ser uma série de ficção científica. E ainda que a estória do episódio coloca que o beijo entre os personagens foi forçado.
    Outra coisa, desde o texto anterior sobre o Miyazaki eu não achei que ele estava sendo polêmico. Algo que aprendi é que para desenhar qualquer coisa, desde Mangá a Graphic Novels, você precisa conhecer a realidade. Saber um pouco como funcionam e são as pessoas, os objetos, as paisagens etc. Entendo que o Miyazaki quis dizer é algo como o provérbio japonês: O sapo do poço não conhece o oceano.

  4. Sakuda,eu fiquei interessado em saber mais sobre o Gekigá.Existe alguma adaptação em anime de um mangá Gekigá ? O movimento Genkigá é muito diferente do conceito que temos hoje de Seinen ?

  5. Os comics americanos também possuem graus de fantasia variados, dependendo do público-alvo. Por exemplo, o público que lê quadrinhos de super-heróis da Marvel ou DC Comics, por exemplo, são formados por adolescentes que gostam desse tipo de histórias.
    Falando em quadrinhos americanos, o mercado editorial de quadrinhos de lá também têm o seu equivalente aos otakus japoneses: os “fanboys”, principalmente os fissurados pelos quadrinhosa de super-heróis.
    Li há algum tempo atrás, na internet, um artigo que trata do preconceito praticado pelos fãs do sexo masculino contra a presença de fãs do sexo oposto nos eventos e convenções de quadrinhos americanos, como o ComiCon, por exemplo (e também nos comic shops americanos). Para esses fanboys, a presença de fãs do sexo oposto nos mesmos lugares que eles frequentam é inaceitável, o que têm gerado comentários preconceituosos contra elas. Como se pode ver, mesmo os fãs de quadrinhos americanos têm um lado que não difere muito do chamado “otaku”. Apenas muda a nacionalidade e o gênero dos quadrinhos, só isso.
    Quanto à questão da tolerância à fantasia…isso é algo que depende de muitas variantes, não só quanto à faixa etária, mas também quanto à questões culturais, étnicas e também aquelas relacionadas ao tempo e espaço. Por exemplo, um quadrinho chinês, cuja história se passa na China de séculos atrás, com todos os seus elementos culturais, será incompreensível para os leitores ocidentais europeus ou brasileiros, que não estão familiarizados com o que é mostrado na obra.
    Algo que faltou citar aqui neste artigo é a necessidade de saber diferenciar a ficção da realidade. Saber separar o que é fantasia e o que é realidade é fundamental para evitar que o leitor acabe se tornando um Dom Quixote (quem conhece a famosa obra de Miguel de Cervantes sabe o que eu quis dizer) de tanto ler/ver mangá/anime, comic americano/cartoon, livros/light novels, etc. Felizmente, a maioria dos que lêem mangá e assistem animes sabe muito bem diferenciar os dois mundos.

    1. Tudo isso tá lá no texto, pode ver. Quase no final eu falo sobre a realidade imutável e o senso de realidade, o que cada pessoa considera realidade. Mas eu tentei me abster de julgar as pessoas.

  6. Ótimo texto Sakuda, um dos melhores que eu já li por aqui, =).
    “Porque muitas vezes, esse elo com a realidade não é o realismo
    extremo, mas saber traduzir com perfeição como seria se a realidade
    fosse fantástica. E, pra muitas pessoas, a realidade seria a fantasia de
    Hayao Miyazaki.”
    Acho que essa frase resume bem a essência do seu texto, e eu concordo totalmente com ela. Aliás, um dos fatores que me fazem gostar de fantasia, em especial dessa que coloca personagens bem humanos em um mundo fantástico, é o fato de que, ao se isolar uma pessoa, um comportamento ou algum outro elemento do mundo real em um ambiente fantástico, é possível analisá-lo e enxergá-lo sobre novos ângulos, o que resulta em experiências bastante enriquecedoras.
    Percebo cada vez mais essa coisa sobre o nosso senso crítico nos deixar menos tolerantes à fantasia. Apesar de ainda adorar o gênero, hoje já não consigo aceitar certas coisas. Por exemplo, eu li a saga “Harry Potter” só depois de adulta e, apesar de admirar muito a criatividade da autora em criar aquele mundo, nunca consegui “entrar” nela de verdade e virar fã. E o principal motivo é que há uma série de comportamentos e conceitos na trama que afastam os personagens dos seres humanos comuns, principalmente aquela coisa de “Pessoas boas não matam. Mesmo que uma pessoa má destrua todo o mundo ao seu redor e tente te matar, você não pode tentar assassiná-la diretamente porque…pessoas boas não matam, oras!”. No âmbito dos animes, tenho um problema semelhante com séries 100% focadas em moe. Nunca consegui gostar
    delas devido ao comportamento irreal, “não-humano” das personagens. Esse tipo de coisa me afasta muito de uma obra. O mundo pode ser o quão fantasioso ele quiser, mas se os personagens não agirem como pessoas de verdade, fica difícil gostar da trama.

    1. É o que rola. Mas as vezes, a abstração proporciona boas diversões. É como ver crianças brincando. Você não é uma delas pra entrar na mesma fantasia, mas não te impede de brincar junto. Eu brinco de Power Ranger com meu sobrinho, mas não do mesmo jeito que eu brincava disso quando tinha a idade dele (e sem os brinquedos de hoje, no meu tempo não tinha nada disso).

      1. A birra que as séries que se escoram em algum arquétipo ou
        maneirismo causam é porque são mais favoráveis ao consumo do que à narrativa. Se bem me lembro, Toshio Okada (que, junto com o Anno, fez parte dos otakus que migraram para a indústria), mostrou descontentamento com os fãs que vinham se formando na década de noventa (a traumática “década perdida”), justamente devido a essa forma do espectador limitar sua atenção a elementos superficiais e esquecer a história.

        Por isso não consigo ver em Miyazaki a rabugice de um velho nostálgico babão – embora também não descarte a possibilidade de uma ou duas doses de saudosismo –; afinal, ele sempre esteve em atividade, com um repertório de sucesso e sempre a favor da suspensão de descrença — vinte e cinco anos atrás, quando, numa sessão dupla, Totoro e Túmulo dos Vagalumes estrearam, esse aspecto ficou ainda mais evidente. Observar a realidade para convertê-la em fantasia é preparar o terreno da imersão, sem precisar castrar a autenticidade dos personagens e transformá-los bonequinhas programadas. Ele prega a fantasia “universal”, que estimula a imaginação e liberta; e critica a que “aprisiona”, que se dá no excesso de vícios do irreal e na acomodação que os mesmos geram – afinal, por mais subjetiva que a ideia de divertimento seja, só dá para alçar grandes voos se nos livrarmos deles, não?
        Paro antes que entremos numa (desnecessária) discussão sobre a linha que separa alienação de escapismo.

        * (Des)Polemize mais, Fabio. Seus textos (os graúdos mesmo), são um bocado bons. *

  7. Ótimo texto Sakuda.O público geral prefere obras que se assemelham com a realidade,as mesmas que por estarem na sua zona de conforto, vêem com receio a imersão em um ambiente que elas não estão familiarizadas.

  8. Li o texto todo também!
    Está muito bom, eu enquanto eu filosofava, já havia chegado a várias conclusões similares às tuas.

    Aliás, eu já havia criado uma teoria. Do motivo pelo qual os oldschools falarem “Não se fazem mais animes como antigamente.”
    Na verdade, fazem sim, apenas ocorre que a percepção desse espectador é que mudou.

    Existe outro fator também que é a “Falta de novidade”. Quando se assiste à muitas séries de fantasia, a pessoa passar a reconhecer os vícios, e não consegue deixar de comparar as séries novas com as antigas. Isso não existe para as crianças, já que aquilo ainda é novidade para elas.

    1. Verdade, eu tenho um rascunho sobre isso também, sobre como os velhos que assistem tudo de todas as temporadas são chatos. Mas ainda tenho que pensar melhor nele antes de soltar.

  9. não eh o único mesmo ótimo o texto, o Miyazaki eh realmente um gênio nesse aspecto (apesar que nem todas as obras dele eu gosto).

  10. Ótimo texto ainda que grande, espero que acabe de vez com essa polemica do Miyazaki as ideias ficaram bem expostas créditos ao Sakuda pelo excelente trabalho.

  11. nao creio que eu seja o unico que leu inteiro, pois o texto está otimo, compartilho da opinião e realmente miyazaki é um genio em retratar seres humanos em ambientes fantasiosos.

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