Review – Jarinko Chie, a garota mais infeliz do Japão

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Yo!

Protagonista feia, num bairro decadente, com pai criminoso e mãe desaparecida. E é um dos animes mais simpáticos que eu já vi!

Jarinko Chie nasceu nas páginas da Manga Action, revista de onde saíram Lupin Sansei e Crayon Shin-chan. É um ambiente adulto, mas não adulto “vou comer sua bunda com uma metralhadora giratória”, adulto no sentido maduro. Temos desde histórias light de comédia até algumas aventuras mais pesadas. É uma revista com um histórico que vale um outro post, já que é a primeira revista de mangá adulta do Japão, onde já passaram Kazuo Koike (com Lobo Solitário, conhece?), Katsuhiro Otomo, Shotaro Ishinomori e Jiro Taniguchi.

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E o papel que Jarinko Chie cumpria nas páginas era o da comédia cotidiana. Mais ou menos no mesmo patamar de Shin-chan, mas com um toque que dava a originalidade da trama. Chie, a garota da história, se auto proclama a garota mais infeliz do Japão. E não é por menos. Ela nasceu em Osaka, uma das cidades mais mal educadas do país, onde a Yakuza é tão forte que é até parte da cultura local. E Chie mora no bar da família com seu pai, Tetsu, um malandro, jogador, violento, mal educado e preguiçoso. O bar foi dado pelos avós de Chie, para que Tetsu criasse vergonha e trabalhasse, mas quem trabalha de verdade lá é Chie. Sim, ela tem uns 10 anos e passa suas noites servindo sake e preparando espetinhos para um bando de bêbados na periferia de Osaka enquanto o pai vai jogar em cassinos clandestinos e arranjar briga com gangues. Por causa dessa vida, ela não vai tão bem na escola e ainda sofre com o bullying das crianças que levam vida normal, sempre falando mal de sua aparência, suas notas, sua pobreza… coisa que ela resolve com uma chinelada potente, única herança do pai que ela agradece, já que um de seus maiores pesadelos é crescer e parecer cada vez mais com ele. É estranho ainda que o gato da família é o mais sábio de todos. E ainda tem o fato de sua mãe ter fugido de casa, abandonando Chie e seu pai para trabalhar em outra cidade. Realmente, não é uma vida florida…

No entanto, Jarinko Chie é um mangá positivo. Não há drama, não tem nenhum momento em que você possa sentir pena. Outra característica de Osaka e de seu povo, a comédia, acaba se sobrepondo, transformando a tragédia em boas risadas, como já dizia Chaplin. Sim, ela é uma menina completamente infeliz, mas não é isso que vai derrubar seu bom humor. Paradoxal, mas é algo que principalmente nós aqui no Brasil sabemos bem o que é.

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Uma trama que corre paralela é a do gato que vive de restos dos espetinhos de Chie. Apesar de ser um gato viralata, Kotetsu (recebeu o nome por lembrar o pai de Chie) é uma espécie de gato hardboiled, com um jeito durão e que precisa lidar com o filho de Antonio, um gato que perdeu um testículo em uma briga com Kotetsu e acabou morrendo em desgraça. A trama parece besta, mas é tão bem trabalhada que a vingança e a relação posterior parecem saídas de um filme de máfia, um dos bons.

O autor de Jarinko Chie é Etsumi Haruki, ele mesmo de Osaka. Autodidata, nunca foi assistente ou teve professor, também não teve muitos assistentes e costuma trabalhar mais sozinho ou com sua esposa. Já desenhou roteiro dos outros, mas sempre quis falar sobre pessoas de sua região, pouco explorada pela mídia. Ainda mais com um mangá de comédia.

Com Jarinko Chie, ele ganhou o Shogakukan Manga Shou, um dos mais respeitados prêmios da categoria. E não é por menos. Chie é um ícone, uma menina forte, geniosa, cheia de problemas, mas ainda feminina e infantil às vezes. O tom de comédia disfarça, mas Chie é tão realista que poderia ser uma menina de verdade. As nuances de sua personalidade são tão trabalhadas que se você para pra pensar, ela é uma personagem muito complexa. Uma criança que quer ser como todas as outras mas precisa também ser adulta se quiser sobreviver, já que seu pai também é como uma criança. Ela carrega tristezas enormes, dores no fundo da alma, mas não tem nem tempo de pensar nisso e ficar choramingando. E um bom exemplo é quando ela finalmente pode rever sua mãe. Aquilo é de uma delicadeza sem igual, um turbilhão de emoções que você percebe em Chie sem ela falar, só em seus atos.

A série ganhou três versões animadas, mas a mais famosa é o longa metragem de 1981, feito por Isao Takahata, diretor de Túmulo dos Vagalumes e um dos alicerces da Ghibli. Ele é um diretor de tanto talento que Hayao Miyazaki e Yoshiyuki Tomino (criador de Gundam), dois gigantes da animação japonesa, apontam ele como mestre. Quando foi indicado para fazer o filme, ele quase recusou. Leu o mangá e não percebeu onde estava a genialidade daquilo. Mas buscando saber mais, ele foi até Osaka, andou em sua periferia e percebeu. Aquilo, que parecia tão falso, era completamente realísta e minucioso para quem vivia em Osaka!

O longa tinha um detalhe especial. Para viver os personagens e seu sotaque tão forte, foram chamados atores e comediantes naturais de Osaka, que deram um tom realista para o anime. Por exemplo, a voz de Chie é da cantora, atriz e ativista feminista Chinatsu Nakayama e muitos dos nomes do anime hoje são lendas vivas da comédia japonesa. Virou uma obra de arte. Praticamente todos os dubladores de Jarinko Chie não tinham experiência alguma com dublagem e surgiram muitos improvisos, principalmente da parte de Norio Nishikawa, que fazia o papel de Tetsu. Muitas vezes, o som não casa com a animação da boca por causa disso, mas o resultado ficava tão engraçado que Takahata manteve. Depois desse filme, o diretor percebeu a vantagem da interpretação de pessoas que não tem experiência em animação e passou a usar muito isso, influenciando seu amigo, Hayao Miyazaki, que também passou a fazer o mesmo. Assim, Jarinko Chie influenciou diretamente praticamente tudo o que saiu com o selo da Ghibli desses dois diretores.

Takahata seria convidado novamente para dirigir Chie, dessa vez em uma série animada para a TV, ainda em 1981. Sua exigência foi o retorno do trio de dubladores do filme, mais o uso de dubladores que falassem com sotaque de Osaka naturalmente. A série de TV teve 65 episódios e média de 29% de audiência na região, um número inacreditável para um anime. Comparando, um evento como o Kohaku, que sempre tem os maiores índices de audiência, chega a uns 32%.

Posteriormente, um novo anime foi feito, sem o mesmo charme e empenho. Mas não tem problema, pois Jarinko Chie de 1981 é um anime com qualidade tão alta que mesmo hoje, pode ser assistido sem o menor problema.

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