O Japão que você devia conhecer: O humor negro e genial de Takeshi Kitano

JCTakeshiKitano

Yo!

Faz tempo que eu tô pra fazer mais posts nessa série, tenho mais de uma dúzia de ideias, mas como dá trabalho, vai ficando… Hoje eu vou falar de um cara internacionalmente famoso, mas de um jeito que só os japoneses conhecem. Bora!

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O cultuado diretor de cinema Takeshi Kitano faz aniversário hoje. Ele é considerado o nome mais importante da história cinematográfica japonesa desde Akira Kurosawa. Tem respeito de qualquer pessoa que goste de um bom filme e é um gênio reconhecido em premiações na Europa, sendo frequente em Cannes e tendo o Leão de Ouro em sua prateleira. Mas o mundo conhece Takeshi Kitano, o diretor de filmes brilhantes, melancólicos e violentos. O Japão conhece Beat Takeshi, o comediante ácido, insano e sem limites.

A figura séria e cultuada de Takeshi é um alter-ego tão contrastante com sua imagem japonesa que nem ao menos reconhecemos o diretor, que atua na maioria de seus filmes, em suas aparições frequentes da TV japonesa. Ele já chegou a ter um programa por dia na TV, estando sete dias por semana na tela dos japoneses, em praticamente todas as emissoras. Até mesmo hoje ele é muito atuante, aparecendo em programas de debate político, de comédia, de curiosidade, ele não se repete.

Para entendermos Beat Takeshi, precisamos voltar à infância de Takeshi Kitano. Quando ele e seus irmãos viviam na pobreza do bairro mais pobre de Tóquio, Adachi-ku, junto de sua mãe batalhadora e um pai, bêbado, que os fazia trabalhar e gastava o dinheiro em bebidas. Além disso, o pai era violento, batendo em sua mãe e irmãos. No entanto, quando Kikujiro, seu pai, os abandonou, Takeshi ainda carregou um misto de sentimentos, uma tristeza misturada de alívio e insegurança. Sua mãe, distante dos problemas de antes, começou a reforçar mais ainda a intenção de ter os quatro filhos na faculdade. De família muito pobre, ela foi mandada para uma família rica ainda jovem para trabalhar como empregada. Sem estudos, nunca conseguiu fazer muito para os filhos, mas os obrigou a estudar, mesmo que suas mesas fossem caixas de madeira e sua luz, a de postes da rua.

Takeshi sempre foi o bem humorado, fazia piada de suas mazelas e apesar de não ter muito apego pelos estudos, acabou mostrando talento para matemática e foi cursar engenharia para realizar o sonho de trabalhar na Honda, criando carros. Na faculdade, conheceu outro tipo de ambiente. Passou a contestar a sociedade, frequentava os bares universitários de Shinjuku, onde se reuniam atores, comediantes, músicos e poetas, discutindo política e tradições, durante um dos mais conturbados períodos da sociedade japonesa pós-guerra. O novo batia com o velho, o orgulho do espírito japonês com o deslumbre com o glamour do ocidente e tudo que os velhos lhe impuseram parecia hipocrisia. Takeshi abandonou a faculdade. Ou foi expulso, dependendo de quem conta a história. Seu diploma só foi concedido em 2004, como uma homenagem.

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Komanechi, uma piada clássica de Beat Takeshi, com alguma referência à ginasta Nadia Comaneci, mas sem o menor sentido.

Foi esse jovem cheio de ideais que buscava um espaço no mundo. Fazendo trabalhos menores, ele buscava um holofote. Algo que sempre dirigiu a vida de Takeshi foi sua busca pelo centro do palco, um reconhecimento que buscava incessantemente. Foi no bairro de Asakusa, o tradicional bairro cultural da baixa-Tóquio, que ele começaria a ter seu espaço. A cultura japonesa dificulta muito a entrada de pessoas solitárias no show business, existe a tradição de ser apadrinhado por alguém que se responsabiliza e te ensina o ofício. Esse seria seu primeiro passo. Ele conheceu Senzaburo Fukami, um comediante local, que se apresentava nos teatros de Asakusa. Foi quem o ensinou e o criou dentro dos palcos, a figura de um pai que ele não teve quando jovem.

Já aclamado no teatro, conheceu Kiyoshi Kaneko, outro jovem comediante que queria fazer par com ele. A época era do Manzai, uma espécie de stand-up feita em dupla, onde um faz o papel de boke (idiota, ou o cara das piadas) e o outro, de tsukomi (o cara da razão). Mas Takeshi não via aquilo com bons olhos. No entanto, seduzido pela oportunidade de aparecer na TV, um holofote ainda maior se acendia. Contrariando seu mentor, ele abandonou Asakusa e nunca mais veria Fukami. Penando como dupla, sua vida passou a ficar pior do que era antes. Quando estavam para desistir, Takeshi notou que o problema era o texto de Kiyoshi, e assumiu o roteiro, com um manzai que não era convencional. Takeshi fazia um longo discurso, cheio de incoerências e idiotices, onde Kiyoshi pontuava. A fórmula deu certo e o sucesso foi tanto que eles ganharam um programa próprio. Assim nascia o Two-Beat, a dupla de manzaishi, onde Kiyoshi assumiu o nome de Beat Kiyoshi e Takeshi abraçou seu Mr. Hyde, Beat Takeshi.

No entanto, as piadas de Takeshi eram completamente insanas. Cheias de palavrões, abusaram dos limites da censura da época a ponto de ter um membro da censura do canal acompanhando a gravação de cada quadro. O desafio era burlar até isso e fazer um programa ainda mais sujo. A NHK, seu canal da época, ficava com o dilema de querer cancelar o programa mas ver os números que comprovavam o sucesso que o Two Beat tinha com as crianças. “A comédia só existe como uma forma de fazer as pessoas rirem ouvindo algo que não eram permitidas a dizer. Sem isso, ela perde o sentido” dizia Takeshi. O assunto de suas piadas eram ainda piores. Ele fazia pouca graça da política, da sociedade, das mulheres, da pobreza, da burrice e de tudo que as pessoas julgavam tabú, indelicadeza. E a cada polêmica, cada censura sofrida, mais o público amava as piadas.

Com o sucesso, Takeshi começou a se dedicar à carreira solo, onde fazia coisas que até Kiyoshi não aprovava. Ele queria ir além. Começou a pegar papéis na TV e cinema.

Nesse ponto, Takeshi já era um dos comediantes mais famosos do Japão, e nada desvincularia sua imagem da comédia. Isso era frustrante, novamente, pois ele queria mostrar seu talento como ator. Sendo constantemente chamado para interpretar papéis engraçados, Takeshi ainda estava buscando a chance ideal.

Sua chance viria em Senjo no Merry Christmas (Merry Crhistmas, Mr Lawrence), quando interpretou seu primeiro papel dramático e impressionou. Em Okubo Kiyoshi no Hanzai, série televisiva sobre um assassino serial, Takeshi mostrou nuances da personagem de Kiyoshi Okubo, que deram profundidade aos estupros seguidos de asfixia baseados em um caso real. Mas o público ainda o via diariamente na TV, sendo Beat Takeshi, insano em suas piadas, a cara da risada.

Foi nessa época que Takeshi construiu seu exército de seguidores. Durante um programa de rádio, o tradicional All Night Nippon, Takeshi interagia com o público atravéz de cartas e assim, criou um elo forte com seu público, na maioria adolescentes. Alguns deles passaram a seguir Takeshi onde ele fosse, e se chamaram “Takeshi Gundan”, o exército de Takeshi. E o comediante os aceitou como “deshi” (alunos), assim como ele havia sido para Senzaburo Fukami. Mas eram muitos! A maioria ainda faz comédia e participa dos filmes de Takeshi e um, Sonomama Higashi, se tornou político, sendo até apontado recentemente para o cargo de Primeiro Ministro do país. Mas não sem passar na prova de fogo.

Takeshi os usava em seus programas, fazendo “piadas” que se tornariam um nivelador do que a TV japonesa é hoje. Eles eram obrigados a fazer tarefas de incrível sadomasoquismo, envolvendo muitos tapas, explosões, quedas, água quente, água gelada, animais… Ele testava os limites de cada um deles e da censura da televisão, indo até onde o público aguentava. E o público sempre queria mais! Precursor dos programas de comédia sádica que hoje nós identificamos na televisão japonesa, Takeshi só ficava mais e mais famoso.

Foi nessa época que ele criou o Fuun! Takeshi-jo, programa de obstáculos, onde inscritos seguiam por várias provas até o castelo, onde Takeshi os enfrentava. A ideia provavelmente veio da comparação da fama de Takeshi na época com Super Mario Bros. O programa trazia os desafios do game do encanador para o mundo real e fez tanto sucesso que foi exportado para o mundo. No Brasil, virou as Olimpíadas do Faustão.

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Era estranho para Takeshi Kitano ver seu alter ego ficar famoso a cada insanidade que ele criava. Ao contrário da personagem criada para o show business, Takeshi era bondoso e inteligente, amante das artes e curioso com a vida. Talvez, sua definição de comédia fosse exatamente por causa de suas personalidades contrastantes. Beat Takeshi falava e fazia abertamente o que Takeshi Kitano nunca ousaria fazer, quebrava os limites. E podia, por causa do passe livre que a fama lhe deu, ser aquilo que Takeshi almejava: o centro das atenções.

A reviravolta acontece aqui. Beat Takeshi já era o nome mais famoso no Japão quando Kikujiro, seu pai, teve um ataque cardíaco. Na cama, ele reviu sua família. Sua relação com o pai sempre foi mal resolvida e ele alternava entre o amor e o ódio. Foi tema de diversos livros e filmes durante sua carreira, inclusive do premiado em Cannes, nomeado exatamente como “Kikujiro” no ocidente (o original era Kikujiro no Natsu, Verão de Kikujiro). Em entrevista, Takeshi disse que as últimas palavras de Kikujiro foram “me perdoem”.

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Em pouco tempo, ele ainda perderia mais um pai. Senzaburo Fukami, seu pai na comédia, faleceria em 1983. O choque foi grande, pois Takeshi nunca se desculpou ou se perdoou por deixar Fukami quando formou dupla com Beat Kiyoshi. A dor desta perda iria perseguir Takeshi até os dias de hoje.

Takeshi reavaliava sua vida aqui e foi quando começou a buscar o caminho do cinema. Ser um bom ator era uma de suas metas, mas ele se tornou diretor por acaso. Indicado para o papel principal em uma comédia, Takeshi, após muitas exigências, causou atritos irreparáveis com o diretor, Kinji Fukasaku, diretor da parte japonesa de Tora! Tora! Tora! e que dirigiu Battle Royalle, seu último filme. Naquele momento, um dos dois teria que sair da produção. Takeshi foi desafiado. “Você conseguiria dirigir?” Takeshi aceitou como um desafio. Sem saber nada de direção, ele gravou Sono Otoko Kyobo ni Tsuki (Violent Cop), reescrevendo muito do roteiro original e transformando a comédia sobre um policial que resolve tudo com violência em um filme dramático de um oficial sociopata indo resolver seus problemas com a máfia na base da porrada. Apesar de inexperiente, Takeshi foi muito bem, ganhando prêmios como diretor. Até mesmo Fukasaku elogiou a obra.

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Desafio. Essa palavra sempre mexeu com ele. Durante os anos que se seguiram, ele seguiu desafiando seus limites e aprendendo o que tivesse vontade de aprender. Fez fotografias belíssimas. Aprendeu a pintar. A sapatear (e usou no filme Zatoichi). E até mesmo produziu um game para Famicon, o primeiro console da Nintendo. Takeshi no Chousenjo foi lançado pela Taito em 1986. Na época, Takeshi estava fascinado pelo videogame e criou o projeto de um jogo estremamente difícil de terminar. Foi considerado um dos piores jogos do ano.

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No cinema, Takeshi alcançou o sucesso internacional com Sonatine, uma releitura do filme de Godard “Pierrot le fou”, sendo que o nome de trabalho do filme era “Pierrot Okinawa”. Reconhecido no mundo todo, finalmente Takeshi Kitano crescia sem Beat Takeshi. Porém, ele estava deprimido. Diversos problemas haviam se juntado, empilhados em um stress distante de qualquer coisa que possamos entender. Ele era apresentador de mais de oito programas semanais. Era o rosto mais conhecido do país. E talvez o japonês mais conhecido no mundo desde Kurosawa. E sua vida privada estava indo por água a baixo. Uma revista de fofoca havia publicado detalhes de um caso que Takeshi mantinha fora do casamento. Aquilo destruiu sua relação e quase levou ao divórcio. Takeshi juntou seu exército de seguidores e invadiu a redação da revista, destruindo tudo e usando os extintores para pintar tudo de branco. Depois, foi ameaçado pela máfia pelo atentado. Mas antes disso, ele fez uma coletiva de imprensa, onde se retratava do acontecido e se retirou da vida pública por alguns meses.

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Bebendo muito e fumando mais do que nunca, ele se afundava em depressão. Nos piores momentos, divagava entre os amigos mais próximos sobre o suicídio. Na verdade, seus filmes naquela época sempre terminavam com o personagem de Takeshi morrendo ou se suicidando. Mas a coisa parecia ir para um caminho ainda mais sombrio do que o da fantasia. Takeshi estava perdendo para a depressão de toda sua vida. Mas quem veio para lhe salvar? Ele fez Minna! Yatteruka? (Getting Any?), um péssimo filme de comédia, o primeiro em que ele não assinou como Takeshi Kitano e sim como Beat Takeshi. O filme, descrito pelo próprio como suicídio, foi uma forma de extravasar sua frustração com o público japonês, que ainda o considerava só um comediante, mesmo que seja o maior deles.

Durante a produção do filme, ele sofreu um acidente que mudaria sua vida. Exibindo uma scooter nova que ele havia comprado, Takeshi se separou de seus amigos e partia para casa quando acertou a proteção de um trilho de trem e teve fraturas no crânio, dano cerebral e cortes no rosto, por não usar o capacete devidamente. Em seu leito, ele passou a refletir sobre seu estado e decidiu amadurecer e se aceitar. Saindo do hospital, ele parou de fumar e beber e passou a se dedicar mais às artes, mais ainda. Começou a pintar como parte de sua rotina de fisioterapia, tomou gosto e chegou a fazer várias exposições de seus quadros. E voltou ao trabalho com energia renovada. Retomou seu programas. Passou a incentivar a arte, apadrinhando artistas, trazendo muitos deles para os holofotes de seus programas. Seus filmes entraram em uma fase ainda mais intensa. Com HANA-BI, ele foi ao mundo novamente, conquistando o Leão de Ouro, mas antes ele fez Kids Return, um filme autobiográfico sobre suas memórias de infância. E cada vez mais ele se consolidava como ator e diretor, sendo finalmente reconhecido. Era o “Takeshi do Mundo”.

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Sua vida problemática e suas várias vidas ainda renderiam o filme TAKESHIS e ele finalmente conseguiria fazer filmes para lhe entreter, como o remake de Zatoichi e Outrage, o “Mercenários” dos filmes de Yakuza, reunindo vários nomes dos filmes de máfia. Dono de muitos prêmios internacionais, ele ainda não tem o da Academia Japonesa de Cinema, por ter desrespeitado sua cerimônia certa vez, indo travestido à entrega de prêmios, como uma gueisha. Como protesto bem humorado, seu lado Beat Takeshi criou uma premiação própria, onde todo ano Takeshi ganha como melhor ator, melhor diretor e melhor filme, premiando seus amigos nas outras categorias. Ele não liga mais. Takeshi se encontrou.

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Hoje, ele ainda é um dos mais atarefados apresentadores da TV japonesa, com nove programas semanais, fora especiais. E ele ainda grava seus filmes. Outrage Beyond saiu em 2012 e ele já se prepara para o próximo. E no dia de hoje, 18 de janeiro de 2013, ele completa 66 anos! Parabéns!

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8 ideias sobre “O Japão que você devia conhecer: O humor negro e genial de Takeshi Kitano”

  1. Estou assistindo a filmografia completa do Kitano e lembrei desse texto, resolvi voltar a ele para entender melhor sua produção.

    Conheci o Kitano nas aulas e semiótica aplicadas ao cinema. Seu nome foi colocado ao lado de cineastas cult como Won Kar Wai, Bergman, Kim-ki Duk etc. Provavelmente pelo fato do meu professor ser um ocidental e conhecer o japonês por Dolls e Hana-Bi. Só posteriormente descobri o Beat Takeshi, humorista, apresentador de TV.

    Curioso que eu lembro de assistir Faustão na infância, e alguns dias rolava as “Olimpíadas do Japão”, com as imagens vindas da tv japonesa mesmo, não sabia que ele estava por trás desse programa.

    Aos curiosos, no Youtube tem um vídeo dele batendo papo com o Shoko Asahara, líder da Aum, obviamente antes dos atentados no metrô.

    Tem os filmes dele no piratebay sim, é só procurar pelo nome nos idiomas possíveis. Alguns se acha pelo nome e inglês, outros em japonês (romanji), to pegando um com nome em francês. Wikipedia está ai para isso.

  2. Tarantino considera o Battle Royale uma de suas grandes influências.
    De lá saiu a Chiaki Kuriama, a colegial assassina de Kill Bill.
    É um filme difícil de gostar de cara, mas recomendo.

  3. Não conhecia Takeshi Kintano e li isso por acaso, achei bem interessante a história de vida dele, realmente ele revolucionou a TV e o cinema japonês.
    Ótimo texto, gostei muito!

  4. Oh, não conhecia tanto assim dele, só havia visto dele Battle Royale mesmo, inclusive eu falei ao entrar aqui: “Olha o professor de BR ai véi”.

    Mas enfim, me interessei em ver os filmes dele, sabe se chegaram a sair em Blu-Ray? (Se sim, tem idéia se foram traduzidos pra PT?)

    1. Sei que a maior parte dos filmes pós Cannes dele saíram em português, não sei Bluray, mas deve ter pelo menos de Zatoichi. O Netflix gringo tem Sonatine, Merry Christmas Mr Lawrence, Battle Royale e Outrage. O brasileiro tem só o Zatoichi mesmo, e abrindo a capa errada!

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