Mangas Americanos – Parte II: O Início da Invasão

Conheça mais um pouco da trajetória dos artistas dos comics americanos que fizeram do “manga” seu estilo!

“Ostra feliz não faz pérola.” Rubem Alves

Bem vindos às segundas-feiras do Gyabbo!, onde os bizarros são normais!

Lembram-se do que eu escrevi neste post sobre “mangas americanos”? Pois é, o que eu dei foi apenas uma pincelada. Hoje vamos falar um pouquinho mais sobre como o gênero floresceu nos Estados Unidos e a razão pelo qual ele pode se desenvolver mais na gringa. Preparem-se para a aula de história:

Nos anos 70, enquanto o mundo estava vivendo uma das suas várias crises econômicas. Neste caso, a do petróleo. Os Estados Unidos estavam cortando gastos em tudo. Existe um livro do cartunista brasileiro Henfil, Diário de um Cucaracha, escrito quando viajou para o país, que fala bem desta época. No início da década as pessoas usavam cheques para tudo – até para comprar um maço de cigarros de dois dólares! Se alguém tirava da carteira uma nota de cem ou era rico ou era um falsário. As pessoas colocavam tudo no crédito. Os ânimos não estavam nada bons na política depois do Caso Watergate. O monstro da recessão rondava…

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Nesta época duas coisas ruins aconteceram ao mesmo tempo para os quadrinhos americanos: primeiro subiram os custos de impressão e distribuição, forçando as comics a aumentarem de preço pela primeira vez em décadas de existência. “Tudo bem, o preço de tudo devia estar aumentando mesmo!” É, só que havia um detalhe… para o americano médio, quadrinhos NÃO deveriam custar mais do que alguns centavos, do contrário eles simplesmente não compravam!

Vamos voltar um pouco. Na década de 30 e 40 os quadrinhos americanos eram verdadeiros almanaques. Traziam muitas histórias, muitas páginas e custavam uma média de dez centavos a edição – que, na época, era semanal. Vamos supor que uma revista da Disney tivesse 80 páginas em 1945, tamanho 19 x 27 cm e custasse dez centavos. Com o tempo, o preço de tudo teria que aumentar, só que para manter os quadrinhos na casa dos centavos a revista enxugou para 68 páginas. Em 1955 diminuiu para 44. E em 1965 para 32 páginas… O famoso Formato Americano que conhecemos (uma revista tamanho 17 x 26 cm com 32 páginas, sendo que apenas 22 são quadrinhos, o resto é propaganda) se originou desta dinâmica.

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Quando viram que não dava mais para diminuir as páginas, nem o formato, as editoras não tiveram outra opção senão fazer os comics conhecerem, no final da década, os três dígitos. Só que o status quo estava sacramentado: poucos compravam quadrinhos de cinquenta centavos porque achavam “caro” e como os anos 70 era a época de corte de custos, ferrou! Sem falar que as próprias bancas de jornal pararam de dar destaque aos quadrinhos porque tiravam muito mais lucro com as revistas normais – fazendo eles perderem espaço físico. A barra foi tão pesada que a toda-poderosa DC Comics declarou falência em 1978 – e por pouco não sumiu do mapa.

Quadrinhos infantis, como Gasparzinho e Pato Donald foram amargando quedas violentas até o seu cancelamento, pois dependiam da boa-vontade dos pais para que fossem comprados – sem falar da “caça as bruxas” que os quadrinhos sofreram desde a década de 50 com o famigerado Comics Code Authority que regulava o que era “adequado” ou não as crianças lerem. Para muitos pais superprotetores, quadrinhos ganharam o status de droga ilícita.

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Gêneros mais adultos, como faroeste, guerra, comédia, histórico e até quadrinhos femininos, também começaram a sofrer grandes quedas – os adultos precisavam priorizar outras coisas em suas vidas. Pode não parecer, mas nas décadas de 40 e 50 o mercado americano de comics era um dos mais oxigenados, com muitas vendas e muita variedade. Quase como o mercado japonês é hoje.

Mas ainda havia pessoas que compravam quadrinhos: os fãs! As pessoas que não conseguiam viver sem sua dose mensal de Super Homem, Batman, X-Men e Homem-Aranha. E uma vez que era preciso, pelo menos, salvar os grandes medalhões, então as poucas editoras que restaram concentraram sua munição nas revistas e nos gêneros mais vendáveis. E o que sempre vendeu muito bem nos Estados Unidos eram os super-heróis – tal qual os shonen de batalha no Japão.

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E mais: para garantir que não teriam maiores prejuízos com distribuição, começaram a incentivar a criação das Comic Shops, as lojas especializadas em quadrinhos. Nestas lojas as compras são bem menores que numa banca de jornal, mas são consignadas. A editora não perde nada porque já recebeu a sua parte do preço de capa.

O problema é que Comic Shop não é exatamente o local onde a maioria das pessoas “normais” vai, porque, a não ser que você ame quadrinhos, não há mais nada para fazer lá. Começou-se a criar uma espécie de segregação: o nerd americano estava formado.

THE BIG BANG THEORY

Para você ter uma ideia de como estava o mercado americano no final da década de 70, imagine este cenário, fazendo uma comparação com o mercado japonês:

Subitamente, restaram só Shonen Jump e Shonen Sunday no mundo… só! Revistas seinen, shojo, josei, kodomo… tudo isto ou desapareceu ou tem vendas tão expressivas quanto um fanzine brasileiro!

E, para piorar, todos os mangas de suas grades são shonen de batalha! Para piorar ainda mais imagine que os autores responsáveis por One Piece, Naruto e Bleach morreram e outros autores estão, desesperadamente, tentando esticar as histórias ad infinitum porque elas são as únicas coisas que ainda vendem bem. E para piorar AINDA mais imagine que o único jeito de conseguir um manga desses é entrar num comerciozinho esquisito, cheio de gente estranha e com odor perene de cecê – a qual era só você ser visto em uma destas lojas para as pessoas começarem a te olhar esquisito, como se você tivesse acabado de sair de uma biqueira. Isso era o mercado americano em 1980.

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A parte boa é que, depois desta desgraceira quase sem volta, mentes criativas que estavam na berlinda começaram a surgir com novas ideias. Os Quadrinhos Underground ainda resistiam com autores como Crumb e Art Spielgeman. Editoras nanicas começaram a apresentar material alternativo de relativo sucesso, como Elfquest e Cerebus. Nerdezinhos insistentes, como Frank Miller e John Byrne, venceram a DC e a Marvel pelo cansaço e foram aceitos para desenharem e escreverem histórias de seus heróis prediletos com uma nova roupagem. E lugares onde ainda se faziam quadrinhos decentes, como a Inglaterra, começaram a exportar alguns dos seus talentos para os Estados Unidos.

Por muito pouco os quadrinhos americanos não desapareceram. Depois de descobrirem que o fundo do poço tinha porão, foram resgatados pela molecada que trouxe novos conceitos para suas páginas. E um destes conceitos, que começou tímido e desacreditado, foi a estética do manga.

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As animações japonesas estavam fazendo sucesso na televisão com seus roteiros muito mais dramáticos e bem-construídos. Robotech é considerado por muitos como o grande start de uma nova geração de “otakus” americanos que começaram a descobrir que, sim, havia algo no mundo além de caras fortões de colante e cueca por cima das calças. Aliás, este também foi o momento que a própria animação americana começou a fazer contato mais direto com os estúdios japoneses. Thundercats, Os Seis Biônicos e até Inspetor Bugiganga foram animações trabalhadas com mãos ocidentais e orientais.

As editoras também não ficaram de fora desta por muito tempo e, ainda na década de 80, começaram a importar alguns mangas e a publicá-los no famigerado formato americano e com as páginas espelhadas. Hoje percebemos o quanto isto era tosco, mas na época era um frescor de novidade de estética diferenciada. A Dark Horse foi uma das grandes importadoras de mangas deste período e, aos poucos, outras editoras começaram a abrir o seu espaço para estéticas diferenciadas – tudo o que fosse possível para fugir dos marombados coloridos!

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Quando a década 90 começou, houve uma súbita revitalização das comics americanas. De um lado, tivemos propostas novas como a linha Vertigo e seus quadrinhos mais “adultos” e do outro tivemos uma espécie de volta à infantilização dos super-heróis com as primeiras publicações da Image Comics. Na berlinda os mangas começaram a crescer em meio a tudo aquilo; novos autores, influenciados pela sua estética, iriam fazer o mercado americano sofrer, na primeira década do século XXI, uma grande invasão nipônica!

O resto é história…

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STAN LEE

O deus vivo dos comics americanos, Stan Lee! Ele, juntamente com Jack Kirb, foi praticamente o pai de tudo o que a Marvel tem de legal hoje, dos Vingadores, passando pelo Hulk, até os X-Men – todos personagens criados na época em que ele já estava desistindo de quadrinhos e queria procurar um emprego decente.

Também é um dos poucos quadrinistas americanos da velha guarda que pôde aproveitar um pouco a fama (a maioria, infelizmente, morreu no ostracismo). Porém, para quem já está com 90 anos e não tem mais o que inventar, ele decidiu atacar como autor de mangás: Ultimo e Heroman são suas obras, em parceria com Hiroyuki TakeiOoda Tamon  respectivamente. Aparentemente ambas foram bem recebidas, embora estejam longe do sucesso do Homem Aranha.

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HUMBERTO RAMOS

Ok, ele não é americano, mas mexicano… porém o grosso do seu trabalho está nos Isteites.

Sua influência dos traço de manga é evidente e ele foi um dos primeiros a fazer este choque de traçados, principalmente quando ingressou na Image Comics e teve liberdade total para fazer os seus desenhos da maneira que preferia. Juntamente com Joe Madureira (já citado no post anterior) ele criou o selo Cliffhanger, onde estreou sua série própria Crimson e, mais tarde, a minisérie Revelações – onde seu traço está mais expressivo do que nunca.

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STAN SAKAI

Em 1984 a editora Fantagraphics Books resolveu investir em um título inusitado: uma história sobre um samurai coelho. Usagi Yojimbo, criação máxima (e única) do nipo-americano Stan Sakai surgiu como uma versão funny animals dos mangas de samurais. Embora o traço esteja mais para Pernalonga, suas sequenciais dinâmicas de narrativa estão meio passo atrás dos mangas.

Este é um dos poucos títulos oitentistas “alternativos” que ainda estão em publicação – atualmente pela Dark Horse. Temos alguns poucos volumes publicados no Brasil que valem a pena conferir!

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MIKE WIERINGO

O saudoso Mike Wieringo (1963 –2007) misturava seu belo traçado com uma estética que estavam com um pé no manga e outro no cartoon. Criticado e aclamado por isto, era inegável que ele tinha algo que muitos artistas americanos careciam: identidade no traçado.

Foi o criador do personagem Impulse para a DC, uma espécie de Flash mais jovem. Também criou sua saga de fantasia Tellos que estava começando a engrenar até o seu inesperado falecimento. Eu, particularmente, tenho ótimas lembranças do trabalho dele na revista do Robin que foi publicada no Brasil em formatinho. Este cara faz falta!

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GERARDO SANDOVAL

Bônus! Este cara não tem um estilo exatamente “manga”, mas vale a pena ser citado porque ele é o desenhista do crossover entre os Vingadores, os Guardiões da Galáxia e Shingeki no Kyojin! Doidera, hein? A história está sendo criada pelo próprio Hajime Isayama, então os fãs dos titãs podem ficar tranquilos que não teremos nenhum releitura americanizada boba… ou não! Mais informações sobre a história AQUI!

Gerardo é outro artista mexicano que já trabalhou com séries como Tomb Raider e Cable and X-Force. Este será o seu primeiro trabalho de grande destaque na carreira.

Conheça mais um pouco da trajetória dos artistas dos comics […]

6 thoughts on “Mangas Americanos – Parte II: O Início da Invasão”

  1. Então não ter inflação alta tem lá suas desvantagens: o preço encarece “naturalmente”, e vc passa a achar que é um roubo, porque está acostumado com tudo igual. Hahaha!

  2. hehe, e aqui no Brasil, a grande maioria não estranha um IPhone custar 4 mil Dilmas.

    Quanto a comparação com o Japão, realmente o que seria se só tivemos Naruto, One Piece e Bleach “ad infinitum”. Foi uma boa maneira de explicar o que ocorreu por lá.

    1. Assim como no Japão as pessoas não estranham um cacho de meia dúzia de bananas custar uns mil ienes :D

      Obrigada, esta realmente foi a forma mais simples de explicar! Cada país tem o seu “genero-mor” de quadrinhos. No Japão é battle shonen, Nos Isteites é super-herói, na França é aventura a lá indiana jones (ou Tintin, que veio antes do arqueólogo chicotudo) e assim vai.

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