#TezukaDay – Apollo's Song – O amor e a verdadeira essência do ser

O paradigma do amor na modernidade da razão

Shogo acorda sem memórias de quem é, sabendo apenas seu nome, em um japão futurista, mais precisamente em 2030. O avanço tecnológico possibilitou a criação pelos humanos dos Synthians, para que eles servissem à humanidade, criaturas semelhantes a bio-robôs. Mas com a imensa carga de poluição causada pela necessidade humana da chamada “vida moderna” (em uma crítica ecológica bem clara do autor ainda na década de 70, mostrando seu vanguardismo), a raça humana acaba sendo quase toda dizimada, deixando os Synthians reinando no planeta.

O início desse “arco” é dos mais impressionantes de toda história por, em poucas páginas, conseguir mostrar e impactar o leitor com temas que hoje são clichês da ficção científica (não tenho certeza se já eram clichês na época em que foi publicado). A cena onde Shogo é apresentado a uma imensidão de túmulos nas ruínas de antigos distritos japoneses causa uma sensação estranha no leitor. Fico imaginando em como isso mexeu com um povo japonês que lutava com os pesadelos da guerra não muito distante que até hoje deixa marcas profundas no país e que buscava uma modernização a qualquer custo, mesmo que ao preço da sua relação com a natureza, relação esta que sempre foi tão intrínseca ao povo japonês.

No seu ante-clímax, Tezuka nos vem colocar em questão o próprio conceito de ser (com ênfase no verbo) humano. Os Synthians, apesar de iguais a nós, não possuíam a capacidade de amar, o que para Shogo os diferenciam completamente dos humanos. Mas se o garoto tem sua trajetória marcada pela impossibilidade de amar, o que ele é? A resposta, que nesse ponto do manga se encontra quase que ao acesso de Shogo, é justamente que sim, o amor é a razão primeira do homem. Perca a razão, mas não perca o amor. E isso nos remete aos primeiros quadros do personagem no hospício quando o médico diz que ao contrário daqueles que perderam a razão, Shogo não é um caso perdido, pois ele ainda pode amar.

Sexo e amor – Caminhos que se cruzam e se separam

Outro ponto fundamental que Tezuka apresenta é a diferença entre o sexo e o amor. Shogo nesse mundo futurista recebe primeiro a ordem, depois o pedido e por fim a súplica de mostrar o amor à rainha dos Synthians, Sigma. Mas como?, se ela não possui genitálias, afirma o rapaz. Habilmente o autor vai transformando a relação dos dois, mudando suas personalidades aos poucos e como poucos conseguiriam, para enfim dar à Sigma uma genitália, que em teoria lhe daria a capacidade de amar. Porém, antes que qualquer ato sexual pudesse ser realizado, ambos são impedidos pelo Primeiro Ministro dos Synthians que sentencia a rainha a ser expulsa da sua posição, dando a ela um rosto horrendo. É aqui o ponto chave, onde o protagonista supera a importância dada para as aparências sociais e declama seu amor à feia criatura, para no fim ambos morrerem novamente, como manda a deusa Atena.

Ao retornar para o mundo real, Shogo é confrontado pelo amor em sua forma máxima, ao presenciar, sem compreender, a tentativa de suicídio em conjunto de um casal que não poderia ficar junto por questões familiares. Ao mesmo tempo nos é revelado que Hiromi é na verdade uma ex-estudante do médico que tratou de Shogo no hospício e que estava tentando cura-lo dando aquilo que nunca havia sido oferecido a ele: afeto. No entanto, Hiromi acaba por se apaixonar pelo rapaz que também a ama. Neste conflito final, ambos, ligados eternamente pelo destino, precisam enfrentar a si próprios e a sociedade que os prende para que finalmente possam entender seus sentimentos.

Reservo-me ao direito de não contar o final para que você, leitor, possa parar nesse ponto desta postagem e, se preferir, ler por si próprio o desfecho dessa epopeia criada pelo mestre Osamu Tezuka. Apesar do meu longo texto até o momento, nada das minhas explicações tirariam o aproveitamento desta leitura que é muito maior do que eu pude analisar aqui. Para aqueles que não se importam com spoilers, segue no próximo tópico minha análise geral de Apollo’s Song, considerando a resposta final do seu autor.

“For love alone has nature put us in this world”

A leitura de Apollo’s Song deixou em mim desde a primeira página marcas profundas. Seja na apoteótica imagem da concepção humana em seu início para retornar com as mesmas páginas no seu final, afirmando que o destino da vida humana, a resposta para a nossa existência é essa: Sofrer amando, amar sofrendo, para todo o sempre.

É apenas nas últimas páginas que o leitor consegue entender que Shogo não é apenas um personagem, mas uma alegoria utilizada por Tezuka para representar toda humanidade; com seus traumas, medos, ironias e sua aparente incapacidade de fazer aquilo para qual está no mundo, amar verdadeiramente. O autor consegue encaixar perfeitamente bem durante suas mais de 500 páginas (na versão da editora Vertical) uma mensagem que não soa saudosista ou antimodernidade, mas que nos faz refletir sobre o que são as coisas realmente relevantes da nossa existência.

Apollo’s Song e o uso da teoria freudiana na sua concepção

Fica óbvia desde o início a influência da teoria freudiana do Complexo de Édipo no desenvolver da história do seu personagem. Sem uma figura paterna realmente presente em sua vida para castra-lo, afinal, durante todas as tentativas de se identificar com os amantes da mãe, Shogo é censurado violentamente, Shogo não supera essa fase do desenvolvimento psicossexual conceituada por Sigmund Freud em sua teoria psicanalítica. Desta forma, resta ao garoto desejar a mãe, figura sexual a qual ambiciona, mas que ao mesmo tempo lhe causa tanto nojo pelo medo do incesto. Esse conflito interno vindo desde a infância mais remota molda a personalidade do protagonista, impedindo-o de amar antes que resolva seus conflitos para com a figura maternal.

Uma cena muito específica e marcante, mais ou menos na metade da história, mostra isso com clareza. Ao fugir do hospício, Shogo se dirige à mãe em uma espécie de bordel (ou host club), acabando por beija-la a força. É a partir daquele momento que o personagem começa realmente a se movimentar, finalmente libertando-se das amarras das produções fantasmagóricas que criara em referência ao afeto que nunca entendeu como receber e sentir. Apesar de Tezuka não se aprofundar em momento nenhum nesse quesito, é de impressionar a habilidade do autor em condensar sem muita verborragia uma teoria, que mesmo que usada por alto, consegue dar uma profundidade grande ao personagem.

Mas as camadas de análise de Apollo’s Song não se encerram a nível intrapsíquico, estendendo-se para uma análise macrossocial das mazelas que faziam parte do seu tempo e que mesmo hoje persistem. Tezuka é sutil, mas claro em falar de uma sociedade de controle que na sua época crescia vertiginosamente com o desenvolvimento de novas tecnologias e que hoje se dá de forma cada vez mais invasiva. Ao chegar ao arco dos Synthians, uma das primeiras coisas apresentadas é uma polícia robótica, em uma analogia ao uso repressivo e normativo das forças de controle policiais, mas que se estende para outras instituições normativas como o próprio hospício retratado na obra ou pela escola da qual o personagem nunca passou.

O vazio da perfeição

Tezuka questiona a razão do mundo para qual sua sociedade se dirigia, enquanto um mundo vazio de beleza, de amor. Passando do épico para o bizarro em uma mudança de páginas, o autor consegue prender o leitor página após página com uma narrativa dinâmica e que, apesar de na realidade não ter muitos momentos de ação, está sempre em um movimento rápido, sem que com isso se perca a ideia que se queira passar.

Seu texto impressiona por, e me perdoem o clichê, soar atual mesmo 40 anos depois. Ao ouvir de um personagem falar sobre como as pessoas chegaram a perceber os problemas causados pela poluição, mas caíram em discursos vazios de mudança, o leitor sente no rosto o tapa dado pelo autor décadas depois. É assim que ele marcou não somente seu país, mas também seu nome como um grande quadrinista, refletindo, mas ultrapassando seu próprio tempo, nunca encerrando suas próprias possibilidades.

Apesar da ressalva quanto a um possível caráter misógino da obra, onde as personagens femininas servem apenas como objetivo do protagonista e não como verdadeiras personagens, é preciso entender primeiro o foco do manga, publicado em uma revista shounen, a Shounen King. Mas também que em uma obra onde o protagonista precisa de espaço, tempo e todo foco possível para ter seu desenvolvimento realmente bem expresso, ficaria complicado dar atenção a outros personagens, tanto que fora Shogo, quem mais recebe atenção do autor é justamente a amada dele em suas mais diversas formas.

Ao falar de sexo, Tezuka imprime uma carga erótica a certas passagens, sem cair no vulgar, sem precisar se levar pelo fanservice. As cenas de nudez não estão ali para o leitor, mas para o seu personagem e o seu desenvolvimento.

Osamu Tezuka termina seu manga com uma possível afirmação do que acredita, ou pelo menos do que acredita até aquele momento, ser a razão da vida, mas permite ao leitor criar seus próprios questionamentos. Isso torna a leitura de Apollo’s Song ainda mais interessante justamente pela universalidade do tema. Complicado ler e não se relacionar em algum ponto, concordando ou discordando do autor e dos comportamentos do personagem principal. Ao chegar ao final do manga, mesmo dando meu veredito sobre qual achei ser a ideia que Tezuka procurou passar, ainda me questiono sobre a real chegada de Shogo ao amor.

Seria a necessidade de ter alguém só para você amar ou isso é apenas fruto de uma obsessão? A perpétua busca humana pelo amor em sua condição como civilização, marcada pela maldição da deusa Atena poderia ser entendida como uma mensagem negativa do amor depois de todo desenvolvimento da história ou sofrer amando não é tão ruim assim?

Essas são perguntas que ficaram para mim e que eu passo para vocês. Com exceção de A princesa e o Cavaleiro (considerado o primeiro shoujo da história) e de um volume de Dororo, Apollo’s Song foi minha primeira experiência com o autor e pude confirmar, por mim mesmo, que sua fama se faz mais do que justa.

Assim termina minha análise dessa grandíssima obra e agradeço a todos que chegarem até aqui. Para os interessados em adquirir seus volumes depois de ler o meu texto, segue na terceira página desse especial para o #TezukaDay uma análise da versão dada pela editora americana Vertical.

Clique aqui para ir até a terceira página.

O paradigma do amor na modernidade da razão Shogo acorda […]

20 thoughts on “#TezukaDay – Apollo's Song – O amor e a verdadeira essência do ser”

  1. Ótimo texto, Denys. Não sei se deveria fazer esse comentário aqui,mas, seus post’s tem ganharam uma “pegada” de análise literária (que,por sinal,eu aprecio muito). Espero que tenha abandonado as “primeiras impressões” U.U.
    Lerei as outras partes depois. o/

  2. Post grande,mais adorei ler, o Tezuka sabe como prender a atenção de alguém,minha mãe é fã da Princesa e o Cavaleiro, já eu como nunca tive a oportunidade de ver não posso dar uma critica … Parabéns Gyabbo adorei o texto,pode ser grande,mais não é tedioso :D quem não ficou com preguiça de ler com certeza também gostou!! :D

  3. Post demais tão bem escrito que me imaginei folhando as páginas do mangá, uma história com um tom mais maduro que deve vir a prender o leitor ao mangá (já que eu fiquei presso ao post). Apollo’s Song necessito na minha coleção!

  4. Já na primeira página, o único pensamento que me vinha sobre o seu artigo era: Freud Approves This. O que veio a se confirmar na segunda página.

    Eu achei que não ficou mto claro o contexto da mitologia grega como você colocou, e a parte psicanalítica… Bem, se ele não tinha figura para lhe criar o complexo de castração, como poderia então rejeitar (com nojo, como, se não me engano, você disse) a possibilidade de um incesto? Afinal, o conceito de incesto não é inerente ao ser humano, e sim algo que se introjeta na hora da escolha objetal. A estrutura psiquica desse garoto estaria totalmente desmantelada se for seguir o conceito.

    Mas fora essas duas observações, achei um ótimo texto e uma leitura demasiadamente aprazivel.

    Parabéns.

    1. @Pss
      Na verdade o protagonista teve figuras parentais, mas elas nunca foram sólidas. Ele chegou a passar pelo complexo de édipo, desejando a mãe e “brigando” por ela com todos os amantes que ela possuia com quem ele tentava, ativamente, se identificar como figura masculina, mas sempre barrado. Como eu comentei no texto, Tezuka utiliza-se das bases do complexo de édipo freudino, algo superficial que o autor deve ter conhecido na faculdade de medicina, profissão que nunca exerceu. Estamos falando dos anos 70, é uma visão da psicanálise diferente. Ao conceito básico do freud, o horror ao incesto é algo antológico, vindo das relações tribais que o homem exercicia. Shogo, justamente por não ter consiguido uma figura paterna, digamos “completa”, ficou no meio termo; não conseguia rejeitar o desejo pela mãe, mas também não o possuia por completo. O protagonista tem a fase do complexo de édipo quebrantada. Por isso mesmo ele não chega a ter uma estrutura de personalidade psicótica, todas as suas incursões, e eu tomei cuidado de me atender a isso, em outras “realidades” são frutos de produtos extrínsecos (drogas, choque, hipnose, traumatismo no crânio etc), nunca produções de uma mente em fragalhos. Pelo que vi na internet Shogo é muito colocado como anti-social, mas isso também não poderia estar certo, visto todo o sentimento de culpa que o persegue durante a história. Existe um quadro muito interessante onde o personagem joga uma pedra e mata dois pássaros (acho que são passáros, precisaria ver de novo). A expressão dele não é de prazer, não é de satisfação, é de tristeza, quase remorso. Para mim, e aqui eu também preciso dizer que não fiz nenhuma análise profunda da personalidade do personagem, apenas fluí com o pensamento, ele está mais para bourderline ou neurótico no limite da psicose.

      E realmente, deveria ter abordado melhor o lado grego da questão. Mas eu mesmo não sei muita coisa das lendas gregas e iria falar muita besteira. Mas esse é um tema que possui toda uma simbologia por trás de Apollo’s Song. Aliás, grega não, romana, já que estamos falando de Apollo.

      Gyabbo!

  5. Ótimo post, que aliás não é grande. Eu considero grande coisas que eu acabo por fim achando tedioso e chato. Um livro de 700 páginas, para mim se for interessante, pode ser muito bem considerado pequeno.
    O teu post foi muito bem feito, mostrando claramente o teu ponto, digno do termo “profissional”.
    Adorei lê-lo do começo ao fim e, com certeza Osamu Tezuka é um grande mestre. Ensinando a “criançada” a fazer mangá desde antes, agora, depois e sempre.

  6. Limite da psicose, então. Eu não posso analizar, já q não li, só fiquei com uma impressão errada de que ele não tinha tido nenhuma figura paterna.

    Tanto na grega qnto na romana o deus do sol se chama Apolo, eu me referi como grega pq vc disse Atena (se fosse romana seria Minerva). Mas tdo bem.

    Obrigada pela recíproca para uma kouhai tão inconveniente.

  7. Excelente texto. Após lê-lo, corri atrás da obra imediatamente para leitura e terminei de ler há poucos minutos atrás.

    O mangá realmente me surpreendeu desde aquela passagem inicial sobre a fecundação, nunca vi o Tezuka mostrar algo poético assim nos mangás dele (pelo menos, dentre os que eu li). Em alguns momentos, eu me identifiquei com os conflitos pelos quais o Shogo passa em suas “encarnações”, principalmente na última que se passa no futuro, que foi a que mais me impressionou com algumas cenas realmente impactantes (como a que você citou do cemitério) e mais ainda na passagem final do mangá quando ele pensa que se o amor é a razão para se viver, então se ele não tivesse o amor da Hiromi, ele precisaria morrer. Impressionante em ver que algo naquele nível de profundidade saiu em uma revista shounen no começo da década de 70 (coisa que só vi com mangás como Devilman, de Go Nagai e The Drifting Classroom, de Kazuo Umezu, que na minha opinião, possuem o mesmo nível de profundidade)

    Foi uma obra belíssima de se ler. Gostei bastante mesmo, sou eternamente grato pela recomendação.

  8. @Suzi
    Agradeço os elogios. Na verdade eu sempre tive essa possibilidade de fazer posts assim, mas a falta de tempo acaba impossibilitando. Por isso saem com menos frequência. Mas não, não irei abandonar as “Primeiras impressões”, é algo que eu gosto de fazer e sei que muita gente gosta de ler. Dá pra levar os dois estilos.

    @Jorge (@mahoutail)
    Se souber inglês, recomendo muita a compra. Está muito barato pela Book Depository e o frete é grátis, além da qualidade gráfica da editora Vertical ser ótima! E obrigado pelos elogios.

    @Nintakun
    De fato é interessante ver como mesmo o Japão, que muitos vem como um conversador liberal (isso ficou meio sem sentido, mas espero que dê pra entender) nos seus comportamentos, especialmente nas produções de entretenimento, passou por grande mudanças. Nunca veríamos uma história dessa em uma revista shounen de hoje em dia. Até porque é como eu comentei no textol. Na época que Apollo’s Song foi lançado os jovens queria outra coisa, eles estavam em movimento, diferente do imenso conformismo da juventude atual (não só japonesa).

    E que bom que gostou do texto a ponto de ir ler a obra em seguida. Recomendo a compra também, está bem barato na Book Depository!

    Gyabbo!

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